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23/06/2015



69. 

A SABEDORIA DO PSIQUISMO

 





Se olhais em torno de vós, vereis que as formas de vida revelam sabedoria profunda. 












Mesmo nas individuações da matéria, o ser material é filho de um germe cristalino, de um impulso que emana do infinito, caracterizando-se em sua forma típica de cristal, como o ser vivo o é em sua forma anatômica; quando mutilado, sabe igualmente reparar sua mutilação. 

Mas em qualquer campo, cada fenômeno é uma afirmação, uma resistência às perturbações, uma vontade de ser em sua forma, uma diferenciação do ambiente para poder dizer: 

eu”

Nos altos níveis da vida, à sabedoria química do íntimo metabolismo celular acrescentam-se a sabedoria técnica da construção de órgãos e a sabedoria que dirige seu funcionamento, para uso dos objetivos internos e externos da vida. O complexo edifício é um transformismo dirigido para a luminosidade do psiquismo.

Há uma necessidade de beleza nas formas da vida. Aquele material orgânico comum que os seres roubam uns dos outros, comendo-se mutuamente, tende a plasmar-se numa forma que exprime a íntima aspiração estética. Já a própria célula é um pequeno ser vivo, que concentra todas as potencialidades da vida e as qualidades do organismo, porque se move, respira, nutre-se (assimila e desassimila), cresce, segrega, reproduz, nasce e morre, sente o ambiente e reage a ele.
 
Desde sua primeira unidade, a vida muda continuamente, quer exprimir-se sempre em suas formas mais altas e complexas. Há sempre grande necessidade de subir e de revelar em si mesma essa ascensão; ao mesmo tempo, vê-se uma necessidade de prudência, que teme aventurar-se ao perigo de tentativas dirigidas a equilíbrios muito avançados e afastados da segura estabilidade dos equilíbrios já experimentados. 

Assim, a vida oscila entre as velhas estradas já conhecidas e seguras, já percorridas nas primeiras e mais simples estabilizações de movimento — as mais resistentes aos choques ambientais — entre a necessidade de conservar-se e proteger-se, mantendo-se na linha do passado (misoneísmo), e a necessidade de absorver, em sua estrutura cinética e de tornar suas, assimilando-as, novas linhas de força, obedecendo ao irresistível impulso ascensional da evolução (inovar-se, revolucionar-se). 

A vida se equilibra assim (até mesmo no campo intelectual e social), entre as tendências conservadoras e as criadoras, e segue adiante na luta entre duas forças opostas: da hereditariedade e da evolução (variações da espécie). A natureza avança, mas com muita prudência. 



As grandes florescências orgânicas só acontecem em períodos particulares, como aqueles a vós revelados pelas descobertas paleontológicas; períodos de transição rápida, em que os edifícios dinâmicos, muito saturados dos novos impulsos assimilados, precipitam em tentativas de formas novíssimas, em que a vida, depois de longas fases de incubação silenciosa, explode numa inopinada febre de criação. Tentativas nem todas bem sobrevividas, períodos de construções apressadas e monstruosas, mas que lançaram as bases de novos órgãos, de novas espécies, de novos instintos. 

Hoje, a fase das formações biológicas tornou-se um passado superado. Os seres que vedes, animais ou plantas, são tipos sobreviventes da evolução, vitoriosos na grande luta da vida. Não podeis observar a evolução, mas apenas suas consequências. A elaboração presente acha-se em outro nível.
 
Período semelhante, de apressadas e monstruosas criações paleontológicas, viveis hoje, mas não como unidades orgânicas, e sim como unidades psíquicas, com a mesma febre de criação (paixões), com a mesma monstruosidade de formas espirituais (erros e mentiras), com a mesma incerteza e instabilidade. Também no campo psíquico e social, a Lei continua no mesmo ritmo. Também o equilíbrio espiritual do mundo oscilou sempre entre o impulso de conservação e o de revolução. 

Algumas células sociais tendem a manter-se na senda dos equilíbrios estáveis e seguros, conhecidos, mas fechados, do passado. Outras células personificam as tendências opostas, destróem e reedificam, tentando sempre caminhos novos, em incessante dinamismo; representam o princípio da revolução, diante do princípio da conservação.
 
São os pioneiros que vivem perigosamente, que dão tudo de si e arriscam tudo, que assaltam e atormentam, mas são os únicos que criam. 

O mundo dormiu por milênios na estase de um ritmo monótono, que voltava sempre sobre si mesmo, nos mesmos pontos que pareciam fixos (princípio de conservação); mas não sabeis que lento trabalho subterrâneo de amadurecimento e de assimilação ocorria no mundo psíquico-social, fazendo com que o equilíbrio estável e fechado se precipitasse um dia na revolução. 

O segundo impulso oposto das inovações tomou hoje a primazia e a alma do mundo tenta, nas pegadas dos grandes pioneiros que falaram sozinhos, há muito tempo, as criações futuras: criações psíquicas, biológicas. No resto deste século vosso trabalho individual e de massa decide a respeito dos futuros milênios.
 
Naquelas fases primordiais das formações orgânicas, a maleabilidade do plasma dobrou-se à pressão do explosivo psiquismo interior, ávido de expressar-se, modelando as formas. Ao lado da formação de órgãos internos cada vez mais complexos, houve uma florescência exterior de todos os meios de ataque e defesa, que a luta contínua impunha.
 
A planta estende suas gavinhas como órgão preênsil para agarrar: produz no espinho a primeira garra para ofender; inventa a astúcia de economizar movimento, lançando sementes aladas ao vento, ou pregando-a nos animais que passam; a arte de envolver as sementes de saboroso fruto, não para alegria do homem, mas porque este, ao comê-lo, leva involuntariamente para longe as sementes; a arte dos perfumes e a estética das cores e das formas, porque também a beleza atrai e é grande necessidade no baixo mundo biológico: a beleza, ao lado da luta, é necessidade universal e protege, como um dom sagrado e divino que dá alegria, diante do qual o agressor para, quase reverente, detido pelo medo de perturbar a harmonia divina. 

Todos os segredos da mecânica, da química, da eletricidade são utilizados: nascem patas, asas, antenas, chifres, tenazes, bicos, presas, ferrões; a arte sutil dos venenos, da fosforescência, do hipnotismo, das ondas elétricas; o psiquismo retifica no olho as imagens visíveis; a arte dos sentidos desenvolve-os cada vez mais finos e complexos, sempre de atalaia; não há descoberta humana que antes não tenha sido encontrada e utilizada pela natureza.
 


Todos esses meios sábios são utilizados com sabedoria ainda maior. Os tecidos são regidos por uma força racional que lhes guia as funções, por isso, o tubo digestivo que digere o plasma, não digere a si mesmo; as glândulas que segregam o veneno, não envenenam a si mesmas. Há ainda o mimetismo, a arte da mentira, e também, a da fuga para os fracos. Por que falta somente uma — a arte da compaixão? 

Porque esta é conquista mais alta, a que só o homem saberá chegar e, como verdadeiro rei, só ele saberá conceber dominando toda a vida no planeta. No uso dos órgãos e instrumentos de ataque e de defesa, a vida manifesta mais evidente seu psiquismo. É ciência sem piedade, mas é ciência.
 
A natureza assegura a sobrevivência das espécies construindo organismos em grandes séries, lançando germes no campo da vida com a máxima prodigalidade. 

A fonte primária, que brota no âmago da substância, aparece-vos com um poder ilimitado e inexaurível; o que lhe delimita a expansão, a força que freia a multiplicação dos seres, reside sobretudo na limitação dos meios ambientais, limitação da qual nasce a luta cuja função principal é a seleção do melhor. 

Sem a rivalidade do vizinho que modera sua expansão, cada espécie sozinha invadiria todo o planeta. A Lei é sábia e alcança seus objetivos. 

Aparece, assim, a vida como desenfreada concorrência de apetites, em que tudo é obtido com a força ou com a astúcia. Este é o nível do animal que não tem horror a seu estado, porque sua sensibilidade é proporcional a ele. O animal é feroz com toda a inocência e nem por isso é imoral, mas simplesmente amoral. 

Nesse nível a vida é contínua guerra, é um atirar-se a ataques aos quais apenas os mais fortes resistem, esse é o estado normal. Aí a bondade é fraqueza e falência. A bondade é flor mais delicada que a sabedoria; nasceu depois, muito mais no alto na escada da evolução.
 
Mas aquela sabedoria já era profunda. O instinto conhece química, anatomia; em alguns casos sabe até anestesiar o inimigo, com injeções nos gânglios nervosos, no ponto estratégico que paralisa os movimentos. 

Uma espécie de himenópteros, necessitados de provisões imóveis, mas vivas, conhecia anatomia e anestesia antes do homem. O instinto tem previdências incríveis, sobretudo em seres primitivos.
 
Um exemplo entre os coleópteros: a larva lignívora do capricórnio (cerambix miles) nascida cega, surda, sem olfato, com apenas um pouco de paladar e de tato - esse rudimento de sensibilidade que nenhuma aquisição psíquica pode obter no ambiente (no caso, é um tronco de carvalho, onde vive perfurando e digerindo) — esse pobre tubo digestivo possui uma sabedoria imensamente superior à sua organização e a seus meios, comporta-se com uma racionalidade e presciência extraordinárias. 



Prepara, com antecipação, um caminho de saída do tronco, que não poderia furar no estado de inseto perfeito; constrói, perto da saída, uma cavidade para sua maturação de ninfa; fecha-se dentro dela com o corpo orientado para a saída, pois sem essa precaução o inseto adulto, todo encouraçado não poderia dobrar-se para sair. E tantas outras coisas sabe por antecipação! Donde lhe vem essa ciência? 

Não sabeis responder. Mas pensai que, se a forma visível é um verme, ele sintetiza em seu psiquismo o princípio que resume todas as formas que o inseto assume e que, em sua vida, adotou há milênios; pensai que esse verme traz em seu psiquismo a recordação de todas as experiências vividas como inseto perfeito; em outros termos, o fenômeno está sempre potencialmente completo, mesmo na fase de transição que vedes, porque, se a forma mutável se transforma, o psiquismo animador está sempre todo presente a cada momento de suas sucessivas manifestações. 

Então, no psiquismo estão os recursos dessa ciência superior às aparências da forma. Chamastes a isso de instinto e não sabeis explicar, num instinto, uma racionalidade tão previdente. 

O instinto não é inferior à razão humana, a não ser pelo campo mais limitado que domina e pelo fato de que, sendo, como evolução, mais próximo do determinismo da matéria, é fenômeno mais simples e mecânico; enquanto o espírito, por evolução, distanciou-se mais da matéria e conquistou aquela complexidade e riqueza de caminhos que denominais de livre-arbítrio, característica, como vimos, da fase das criações.
 
Cada ser, tanto quanto o homem, traz consigo esse sutil psiquismo que lhe dirige as funções orgânicas; que lhe mantém constantemente a identidade, apesar da contínua renovação completa dos materiais que constituem o organismo; prepara-lhe e dirige o desenvolvimento e as ações, com uma precognição que só sabe quem viveu e recorda. 

Sem esse psiquismo, não se explica como os sempre novos materiais da vida voltam exatamente a seu posto de funcionamento; não se explica como a corrente de tantos elementos heterogêneos esteja ligada em continuidade; como, de todas as impressões transmitidas pelo ambiente, só algumas sejam assimiladas, outras corrigidas, outras repelidas. 

Esse princípio resume, verdadeiramente a hereditariedade das características adquiridas, implanta-se no germe e lhe dá novamente a marca recebida das impressões e experiências vividas. Ele precede o nascimento e sobrevive à morte, mesmo nos animais, também eles — e é justo — pequenos fragmentos de imortalidades e de eternidade; ele renasce continuamente, enriquecendo-se com a experiência de cada existência. 

Vós mesmos podeis verificar com a domesticação e adestramento, que nos animais as portas do instinto não estão fechadas, ou seja, ele tem ainda, sob vossos olhos, a capacidade de enriquecer-se com qualidades, de assimilar coisas novas. Há sempre uma possibilidade de progresso no raciocínio cristalizado do instinto. As qualidades, mesmo no homem, nutrem-se, continuamente por seu exercício cotidiano. 



O psiquismo plasma-se num processo de constante elaboração: no campo orgânico, como no psíquico, a falta de uso atrofia e destrói, da mesma forma que a atividade cria órgãos e aptidões (daí a necessidade biológica do trabalho).
 
Falei de um inseto, mas os casos são infinitos. Sem esses conceitos, o fenômeno do instinto, de sua formação, de sua presciência, e os próprios fenômenos da hereditariedade permaneceriam no mistério insolúvel.
 
A presença de um psiquismo diretor torna-se evidente no fenômeno da histólise do inseto. Aí não encontrais mais uma sabedoria funcional, de órgãos internos ou externos, nem a sabedoria que dirige as ações do animal. 

histólise do inseto

Aí se revela uma sabedoria mais profunda: a que sabe criar um organismo novo a partir de um organismo desfeito. Nesse fenômeno ocorrem metamorfoses profundas, que revelam a presença de um psiquismo, de maneira ainda mais evidente que nas reparações orgânicas que já observamos. 

No estado de crisálida, acontece em vários insetos (lepidópteros) que se fecham no invólucro protetor, fenômeno misterioso, no qual órgãos e tecidos desagregam-se, perdendo seus caracteres distintivos assim como a estrutura celular anterior, numa pasta uniforme, amorfa, em que não se percebem sobrevivências da organização demolida. 

A essa espécie de desmaterialização orgânica segue-se nova reconstrução, verdadeira histogênese, em que novo organismo ressurge tão diferente na constituição orgânica, que não se pode considerar preso ao precedente mediante relações diretas de derivação. 

O psiquismo diretor do dinamismo fisiológico, mesmo na reparação orgânica imediatamente ativo no complexo quimismo da vida, emerge aqui em toda a sua independência, a partir da forma, e mostra seu completo domínio sobre esta, porque dela se destaca, desmaterializa-a e a reconstrói diferentemente, sem continuidade fisiológica, exorbitando todas as potencialidades construtivas do organismo. 

É necessário substituir o conceito absurdo de funções — efeito de uma natureza específica de células e tecidos e de uma localização funcional, em estreita dependência de uma especialização na estrutura de órgãos e funções — pelo conceito de um psiquismo superior independente e dirigente, de que as formas são apenas a manifestação. 

Ele as plasma, dirigindo-lhe o íntimo metabolismo incessante e, quando este tem de enfrentar de um salto as maiores distâncias, em metamorfoses profundas, que implicam solução de continuidade no desenvolvimento fisiológico, então o psiquismo permanece como único fio condutor do fenômeno, que permanece único e contínuo, embora, de modo inexplicável, pareça quebrado. 

Não há aí, portanto, uma substância orgânica que, de acordo com a conformação diferente e com a estrutura celular alcançada por evolução, dê lugar a funções específicas, cuja causa seja perceptível apenas na especialização do material orgânico, mas existe um psiquismo diretor que modela o plasma, para que este possa exprimir a função, de acordo com o impulso recebido. 

A solução dos mais profundos problemas biológicos reside somente nesta ultrafisiologia do psiquismo.