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28/10/2015


II


O “EU SOU"

ESQUEMA DO SER

 

 


Caminhemos juntos à procura de Deus. Não, certamente, do Deus absoluto, para nós superconcebível na Sua substância, para nós não suscetível de definição, do Deus transcendente, que “é”, além de toda a Sua expressão. 

Para nós, humanos, Ele é hoje o inacessível, o incognoscível, que a nossa mente não pode alcançar além da Sua suprema afirmação no todo em que Ele nos aparece a qual nos diz: 

"Eu sou".
 

Caminhemos ao invés, à procura do Deus para nós concebível, porque imanente, expresso na forma, que nos é acessível porque sensoriamente vestido de uma expressão em nosso contingente. Eis um humilde arbusto solitário ao pé de uma mureta. Que significa essa vida, que pensa e deseja esse pequeno ser, que pensamento contém? 

Deixemos de lado a botânica, a química. a estrutura orgânica. Busquemos o mistério que das profundezas anima essa vida. Esta pequena planta sabe muitas coisas. Nós o deduzimos pelo fato de que ela as sabe fazer. 

Se não as sabe como consciência desperta e refletida que as conheça, conscientemente, pela razão e pela análise o fato de que ela se comporte como se as conhecesse prova que deve saber de outra maneira. 

Estranho modo ele saber inconsciente mas ele é habitual na vida! Entretanto se possuímos os efeitos de uma sabedoria, sinais evidentes que revelam a sua recôndita presença, e se essa sabedoria não se encontra no consciente do ser, é necessário procurá-la algures. 

Onde? 

Essa consciência cobre apenas o campo da sua atividade imprescindível aos fins da evolução. Se para o ser individualizado o resto do universo é um oceano de mistério, sepultado no inconsciente, só o é relativamente a ele e não em si mesmo, porque esse oceano de inconsciente é formado de seres, cada um consciente do seu pequeno trabalho, funcionando o Todo imerso em uma atmosfera de pensamento, que o guia e rege.
 

Quando, pois, cada ser nos demonstra que sabe resolver todos os problemas inerentes às suas necessidades vitais, isto significa que por ele sabe e pensa o consciente universal, que lhe transmite somente a conclusão do seu raciocínio, com um impulso, cuja análise o ser não sabe fazer, mas que lhe diz em síntese: 

"faça isto".
 

Então ele, ignorante do funcionamento do Todo, passa a ser um instrumento inconsciente do consciente universal, que funciona por ele onde ele não pode nem sabe atingir. Não se nega, com isto, que o instinto seja formado pela experimentação da vida, com a técnica dos automatismos, como já dissemos em A Grande Síntese. 

Mas não falamos aqui dessa pequena inteligência a posteriori, e sim da superior inteligência a priori, que tudo guia, inclusive a formação do instinto, imprimindo-lhe a direção necessária, de acordo com o plano geral da evolução.
 

Os impulsos fundamentais de nossa vida, tanto os do destino individual, quanto os do destino coletivo, que se desenvolve na história não constituem um produto racional e consciente, sendo insuficiente para explicar-lhes a gênese somente um instinto puro formado pelas experiências do passado, pois derivam do consciente universal, que trabalha por nós onde ignoramos.
 

Aquela pobre e ignorante plantinha sabe, pois, viver por si mesma, conhece os meios adequados para isso, proporcionados ao seu escopo e ao ambiente, sabe escolhê-los e coordená-los. Ela quer viver. Ela quer crescer e sabe crescer. Ela quer reproduzir-se e sabe como fazê-lo. 

E, assim, cuidando não mais de aparência sensória, mas por intuição penetrando a forma que ultrapassa essa aparência, nós vemos um pensamento sábio que está além do consciente do ser, que enfrenta e resolve problemas, que opõe uma vontade decidida contra qualquer obstáculo, transpondo-os a seu modo. 

É que dentro desse humilde ser existe uma alma, embora sem o grau espiritual que atingiu no homem; ainda que não passe de uma esmaecida manifestação que o consciente universal ou alma do Todo estendendo à periferia da sua manifestação, individualização particular, diante do Todo, imersa no inconsciente.
 

Esta forma é um transformismo contínuo. Efetivamente, não a encontraremos jamais idêntica a si mesma e periodicamente a vemos morrer e reproduzir-se e, assim, através da morte e do renascimento, por meio de uma renovação contínua, sobreviver sempre. 

Se a forma não pode assim existir senão continuamente renovando-se, deve então haver atrás dela o imutável, um outro seu aspecto, que permanece constante, aquele sem o qual não se explica e não rege a vida perene de um dado objetivo, caminhando através da incessante mutação de sua existência. 

E qual pode ser esse outro aspecto do dualismo, inverso e complementar, como o é o imóvel diante do móvel, qual pode ser ele diante da forma material, senão a sua imaterial ideia animadora, senão o pensamento que sabe tantas coisas e que, imutável, se exprime revestindo-se de forma mutável?
 

Penetremos ainda mais profundamente no íntimo dessa pequena planta.
 

Então veremos que o seu ponto central como o de todos os seres, aquele para o qual tudo converge em síntese para depois se irradiar analiticamente, o ponto pelo qual passa e se manifesta o saber do consciente universal, a vontade de vir, que permanece constante no transformismo, é o eu . 

O próprio homem sabe que, tendo sido ontem criança, sendo hoje adulto e amanhã velho, tudo muda nele e em seu derredor e que a única coisa que nele jamais muda é a existência desse centro pelo qual ele se chama e se sente sempre "eu". Enquanto no ser tudo nasce e morre, somente esse eu não morre jamais. 

O fato de que ele permanece através de tão grandes transformações, como são as que de um lactante, fazem um homem e depois um velho, faz com que, intuitivamente, sinta a lógica de uma idêntica continuação da vida do "eu", também através desta outra mutação que é a morte do corpo, que em toda a sua vida jamais foi idêntico a si mesmo e não fez mais do que continuamente morrer e renascer. Por que, pois, só essa outra transformação deveria ter a força de destruir esse "eu" que se revelou tão invulnerável a toda mutação exterior?
 

Se toda forma pode existir sem desfazer-se no contínuo transformismo que a constitui, resistindo compacta ao turbilhão das suas mutações, é porque no íntimo de todo ser existe esse "eu", centro firme na tempestade transformista. Todo ser existe no tempo enquanto disser: 

"eu". 

Di-lo o átomo, a molécula, a célula, o mineral, a planta, o animal, o homem, a família, o Estado, a humanidade, a Terra, o sistema solar, os sistemas galáticos, o cosmo. 

No universo, tudo está sujeito a essa necessidade de individualização. Ele é composto de seres diversamente diferenciados, mas todos dizem igualmente: 

"eu". 

De um polo ao outro do ser tudo é construído segundo esse princípio, que é lei fundamental 

E assim que toda força no universo é individualizada, segundo suas qualidades particulares, o que explica a instintiva tendência dos povos primitivos para personificar as forças da natureza, atribuindo-lhes características humanas. É também sob este aspecto que podemos ver as forças do mal personificadas em Satanás e seus demônios [3], que, de resto, nós realmente vemos existir em nosso mundo, nas manifestações dos seres maus. 

Esta característica de individualização, que em qualquer forma é sempre indispensável à existência de um ser, o princípio comum a todos, a ideia-mãe do universo, o esquema fundamental do sistema. 

Este princípio universal do "eu", centro de todo o ser, é a única coisa que pode manter-lhe a constante identidade em uma forma que, de outra maneira, não poderia encontrar-se a si mesma e se perderia no seu contínuo transformismo.
 

É este seu íntimo eu que define toda a forma nas suas características particulares, forma pela qual ele concretamente realiza a sua expressão. Se todas as formas são diferentes, é porque os “eu” são diferentes, embora conservando cada qual na sua diversidade a característica universal comum de ser um "eu". Tornamos a encontrar aqui o conceito já desenvolvido nos volumes precedentes, do princípio central único que no universo se pulveriza no particular periférico das formas, sua manifestação. Mas permanece o esquema único da constituição do universo por individualizações.
 

Assim se explica como cada ser assume uma forma típica, definida, com os seus limites de desenvolvimento no tempo e no espaço Se tudo isto já não estivesse estabelecido no esquema e não fosse conhecido, ainda que não seja por um processo consciente, pelo “eu" profundo que sabe, quer e permanece idêntico através de contínua mutação de forma, não haveria nenhuma garantia de ordem funcional e de regular desenvolvimento. Assim tudo é típico. 

O universo é um edifício composto de infinitos "eu", que, de um "Eu" central do Todo, se pulveriza hierarquicamente descendo para "eu'' sempre menores. Isto desde o infinito galáctico ao nuclear, um "eu" astronômico, geológico, físico, químico, espiritual, humano, animal, vegetal, sempre este "eu" é uma sabedoria e uma vontade constante, inteligentemente dirigida para um dado fim. que irresistivelmente tende à sua exteriorização. 

Todos esses “eu” se reagrupam por unidades coletivas, dos menores aos maiores, alcançando, das mínimas unidades atômico-nucleares às máximas organizações galáticas, do simples psiquismo orientador das moléculas dos cristais ao do homem e do gênio. Todos esses “eu” mantém um sistema orgânico que é próprio a cada um, evolvendo e funcionando sempre em cooperação com todos os outros “eu”. 

Esse principio, pois, não apenas conhece, quer, permanece constante, sabe reger o funcionamento individual, como também sabe guiar-lhes a evolução e coordená-los com o funcionamento de todos os outros "eu”.
 

Tudo isto nos mostra que o universo é um Todo que ainda quando pulverizado em infinitas formas ou expressões de um mesmo princípio central único, permanece organicamente compacto, porque ele é construído segundo um esquema único, consoante um idêntico modelo que se repete ao infinito em cada unidade menor, em que a maior se ramifica e se diferencia até à extrema pulverização. 

O que toma compacto o universo é ser ele um “eu”, é o mesmo princípio unitário que mantém compacta toda forma que, à semelhança da máxima, é uma unidade coletiva resultante da coordenação orgânica de unidades "eu" menores. Assim tudo permanece unido porque coligado por uma contínua atração de parte a parte, por uma confraternização dos "eu" menores nas unidades maiores.
 

A observação da estrutura das formas no plano de nosso contingente nos levou à verificação desse princípio universal inserto em cada forma, o do "eu sou".
 

Agora é a observação da estrutura de nosso particular que nos indica a estrutura do universal. Assim como cada individualização particular do ser não pode existir senão enquanto diz: 

"eu sou", isto é, em função dele e como sua manifestação, assim também a individualização máxima do ser, isto é, o universo, não pode existir senão enquanto diz "eu sou'', ou seja, em função deste e como sua manifestação. Isto à semelhança do que constatamos em todo ser, inclusive o homem, fato que cada um pode observar em si mesmo. 

E, se o "eu sou" de cada individualização é o seu íntimo princípio animador, se o "eu sou" do homem é a sua alma, que poderá ser o "eu sou" do universo, o princípio animador da forma máxima, senão Deus?
 

Assim se nos tornam compreensíveis as relações entre Deus e o Universo, pois que nós podemos observá-las refletidas em nós mesmos. Deus é o "Eu sou" do universo. Este, no seu aspecto dinâmico e físico, é a forma pela qual Deus exprime o pensamento e como que um Seu corpo, de modo que de Deus nós possamos na forma também, ver igualmente um semblante que pode espelhar na fisionomia e expressão o seu íntimo pensamento animador. 

Assim como nós procuramos num rosto humano uma alma, assim como em toda forma procuramos o princípio inteligente que nela se exprime, assim também podemos ver na criação a fisionomia de Deus. 

E quanto mais a nossa vista se torna penetrante pela intuição, tanto mais cada forma se fará transparente e lhe revelará sua íntima substância espiritual. Torna-se cada vez mais patente, então, que o criado é a expressão de um seu íntimo pensamento nele imanente, no qual a transcendência de Deus desceu e permanece sempre presente. 

Se, como transcendente, Deus permanece na Sua essência como um "Eu sou", incognoscível para o homem, como imanente, Deus, com a criação, transferindo-se em nosso relativo, através da forma que assumiu para os nossos sentidos, fica acessível ao conhecimento humano. 

E em que consiste a progressiva indagação da ciência, que avança de descoberta em descoberta, senão em contínuas e crescentes sondagens na profundeza do pensamento divino? 

Este está escrito no funcionamento orgânico do universo, e quem o indagar procura ler no livro em que estão escritas as leis ao ser e busca compreender a idéia diretriz, a alma do Todo. 

O místico por sua vez, é um sensitivo que, ainda quando não se dê conta consciente e racionalmente, se move atrás da mesma indagação por vias mais diretas, porfiando, através das suas visões e sensações místicas, alcançar a mesma compreensão do pensamento de Deus.
 

Se nós, certamente, não podemos atingir o conhecimento de Deus transcendente absoluto, podemos aproximar-nos muito de Deus imanente, vivo e presente nas formas que O exprimem isto é justamente em virtude desse esquema unitário do "eu sou” segundo o qual é construído à imagem e semelhança do caso máximo, analogicamente, todo o universo até aos casos infinitesimais. 

Podemos imaginar o nosso universo atual como um Todo-Uno que, qual um espelho, se tenha fragmentado em miríades de partículas. Cada uma destas, embora em fragmento com respeito ao Todo, conserva-lhe em particular as qualidades, de modo a poder nos traduzir e mostrar a natureza do Todo, não obstante o fragmento tenha perdido a unidade global com a fragmentação. 

Desta forma cada parte reproduz o universal esquema do ser, isto é, cada criatura repete reduzidamente o divino princípio unitário, alma do Todo. Em outros termos, cada "eu", com a sua forma, é um caso menor, que repete em miniatura o motivo cósmico, no-lo narra, no-lo explica. Sendo em si um pequeno universo, fala-nos do universo máximo.
 

Ignoramos se tudo isto corresponde aos princípios mais aceitos em teologia, filosofia, psicologia etc. Sabemos, apenas, que cada ser fala verdadeiramente de Deus e que, segundo esta realidade é construído o universo.

 
[3] - O vocábulo Satanás (diabo, Lúcifer, demônio, Belzebu) é de origem hebraica e significa adversário. As referências a ele, no Velho e no Novo Testamento, embora poucas, são claras e objetivas Dentre outras, podemos indicar as seguintes:
 

Jó 1:6; Zacarias 3:1; Isaias 14:12 e segs; Mt 4:1-11; Mt 12:26; Lc 4:1-13; Lc 10:18; Mc 1:13; II Co 2:11; II Co 11: 14; Ap 12:9; Ap 20:2; Ap 2:9.

Jesus Cristo e seus discípulos falam dele como um ser real. uma entidade espiritual, um autêntico anjo caído ("Eu via Satanás caindo do céu como um raio"). Não se trata, portanto, de uma alegoria, de um mero símbolo do mal, mas de uma força maligna individualizada.
 

Em face da evidência salientada em diversas passagens da Escritura e, principalmente, do
Evangelho, temos de admitir hoje a existência de Satanás como um ser vivo e atuante, também criatura de Deus, presentemente como representação do mal, em oposição transitória a Cristo - representação suprema do Bem. (N. do T.)