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23/11/2015


IX
 

CONFIRMAÇÕES 

EM NOSSO MUNDO

 





 




"Portae inferi non preavalebunt [7]". 

Justo. Mas por que? 

Só agora podemos compreender as razões. A concepção dualística acima exposta, nos revela que, ao lado das forças boas do sistema, existem as satânicas do anti-sistema, que procuram inverter todo o sistema, para arrastá-lo igualmente na própria fatal destruição 

Mas em vão! A estrutura do Todo nos diz que o mal está irremediavelmente condenado em virtude da própria posição por ele assumida no sistema e pela natureza mesma deste.
 


O seu reino é periférico, está na forma. Ele pode encarniçar-se contra os efeitos, mas as causas primeiras estão além do seu assalto. Não ele, mas somente Deus detém o timão da grande nave do universo. Na estratosfera do pensamento está, pois, a grande paz das coisas eternas. 

Ali Satanás não chega, e tanto mais lhe fugiremos, quanto mais subirmos. Mesmo no reino da matéria, a sua vitória está encerrada no tempo. A eternidade supera e vence o tempo. Mas, por ora, a Terra é um dos seus reinos. 

O nosso mundo faz parte do universo desmoronado, e, por este motivo, a vida se desenvolve aqui em uma atmosfera de revolta, de mal e dor. Aqui, as forças satânicas podem manifestar-se, isto é, agir em sentido sinistrógiro e, por isso, as vemos exprimir-se na pulverização de tudo, no relativo. 

Dividir a unidade. fracioná-la cada vez mais até a sua destruição, este é o impulso de Satanás, com objetivo de demolir o sistema dextrógiro, unificador, retificador, tendente à plenitude da vida. 

Eis porque na Terra se eleva a barreira do limite a cada passo, sufocando a alma anelante de infinito, do qual nasceu e de que é feita. 

Eis o espaço dividido, que nos torna rivais E o espaço em si mesmo não tem limites! Eis o tempo seccionador, reduzido a medida de esforço e de ganho ("tempo é dinheiro!") e o temor de que nos falte. E o nosso espírito é feito para a eternidade! 

Eis a luta pela riqueza e o anseio infinito da alma ligada às efêmeras alegrias de um corpo caduco, quando riqueza e alegria são infinitas em Deus! 

Eis a um passo, ao alcance da mão uma abundância sem par, e ser-se dela separado pela incapacidade de conquistá-la!
 

Deus aí está, Que nos aguarda e, no entanto, não sabemos alcançá-Lo por preguiça, ignorância e incapacidade de compreender! Que barreira tremenda é a nossa involução! Estamos no reino da subversão dos valores. 

Tudo, de calmo, eterno, estável, faz-se agitado, fracionado, incerto. Tudo se torna calculado, pensado, pesado, medido, disputado. Assim nascem a miséria e a dor. Aí está o império do contingente, o afã de subdividir a atenção em particularidades, na análise sem fim do relativo. 

Eis o vórtice da civilização moderna que, com espírito satânico, porfia por triturar o espírito entre as engrenagens de suas máquinas; que, com a miragem de umas tantas vantagens materiais, destrói a maior riqueza da alma, que é a bondade. Vive-se. Assim, sob o terror de que falte tudo, quando tudo é infinito. 

Se fôssemos capazes de compreender que somos criaturas de Deus, isto é,
filhos do Pai Supremo, que o universo é construído para a nossa vida, primeira necessidade, e que esta é por consequência sumamente protegida por nosso Criador, que nos ama, não haveria razão para tantas e inúteis aflições.
 

É o Uno íntegro que aterroriza Satanás. Não conseguindo ele destruí-lo, procura demoli-lo até onde pode, o mais que pode subdividindo-o. Percebe-se nisto uma íntima vontade de pulverização, para chegar à destruição. Fragmentar, triturar, dividir e atirar um contra o outro, a dissensão, a contradição, a ânsia, o tormento, a guerra, tal é o ideal subvertido de Satanás.
 

Se descermos das grandes visões sintéticas para a realidade quotidiana de nosso mundo, neste também veremos que são elas verídicas e que as teorias acima expostas encontrarão continuas confirmações. A nossa realidade não se pode mesmo explicar e compreender a não ser em função delas. Por que, por exemplo o homem é tanto mais destruidor, quanto mais involuído? 

De onde deriva o instinto vandálico dos primitivos? E que quanto mais involuído o indivíduo, tanto mais próximo está do polo negativo do ser, e tanto mais afastado do positivo. 

Quanto mais for involuído, tanto mais na periferia do sistema se encontra o ser, tanto mais distante do centro genético de Deus, tanto mais invertido no sistema oposto a destruição. 

Assim se pode compreender como fosse fatal que Cristo encontrasse o martírio na Terra. Que mais pode encontrar aí quem, provindo do centro, se lança para a periferia, reino do anti-sistema? 

Aqui a manifestação do ser é a agressão e a destruição. Elas tiveram de defrontar-se com o Amor de Cristo, e com o Amor deveria vencê-las.
 

Que o princípio da destruição seja próprio da periferia do sistema e o princípio genético seja próprio do centro, prova-o também o fato de que as formas da vida para sobreviver têm que, continuamente, travar luta, resistir a assaltos, suportar um ambiente hostil, em que se faz sentir uma ação destruidora em seu exterior, enquanto, de seu interior, onde reside o princípio genético que todo ser possui no íntimo, elas recebem continuamente recurso de reconstrução (defesas orgânicas, reparação de tecidos etc.). 

A vida se manifesta, efetivamente, do interior para o exterior: 

esta é a direção do fenômeno. 

Este se nos apresenta como uma floração contínua, por obra de um influxo emanado de um imponderável no íntimo do ser, que faz pressão para manifestar-se no plano físico. Uma vez neste, fica sujeito a contínuos atritos e assaltos (sistema sinistrógiro), num desgaste lento até à morte, mas sustentado por um íntimo impulso vital (sistema dextrógiro), luta pela sobrevivência e, prepara, ao mesmo tempo, com a reprodução, a imortalidade.
 

Por tudo isso, a fadiga e a luta de viver são necessárias, porque da experiência nasce a evolução, que leva o ser a nível superior. Encontramo-nos no ponto de atrito (dor) entre os dois sistemas, devendo ser nosso trabalho de reconstrução com o desgaste do sistema sinistrógiro (o mal) em favor do sistema dextrógiro (o bem). 

Devemos restaurá-lo, porque nós o destruímos. E a justiça de nosso domínio sobre os seres inferiores se explica pelo fato de que, com o nosso esforço, mais temos avançado no caminho da reconstrução.
 

Este árduo trabalho não pode ser executado pelo espírito senão nas zonas periféricas da destruição, onde a matéria oferece mais resistência e o ambiente é mais hostil. Ele aí tem que se submeter ao sacrifício e à dor, para promover a evolução, isto é, aquela elaboração para a qual as zonas mais calmas do centro não poderiam oferecer nem oportunidade, nem o material. Mas, outra razão ainda existe para isso. A queda foi no estado de matéria, e o ser deve ressurgir dela, através dela, carregando-a consigo como seu corpo. 

A carga só poderá aliviar-se pela sua purificação e reespiritualização, operada pela dor. Decaído na matéria, ele deve reerguer esta parte decaída de si mesmo, reconduzindo-a, com o próprio esforço, ao primitivo estado de pureza e perfeição espiritual. 

Por este motivo, a evolução do ser se processa na matéria. Por mais que seja, essa projeção à periferia tende e serve para
elevar o ser até o centro. O sistema, contra todas as resistências do anti-sistema, é sempre construtivo.

Essa evolução procede do caos para a ordem, em todos os planos A primeira criação de espíritos foi um estado orgânico perfeito, em que reinava uma ordem hierárquica. O desmoronamento convulsionou essa ordem em uma hierarquia subvertida, uma anti-hierarquia do anti-sistema, contraposta à hierarquia do sistema.
 

Na anti-hierarquia o deus é Satanás e o bem é dado pelo mal e a perfeição está no caos A grande luta em nossa fase se trava entre os dois princípios e hierarquias, pela reconstrução do estado originário orgânico, partindo do estado inorgânico caótico, em que caímos e do qual evolvemos.
 

Por este motivo, as nossas hierarquias humanas são falsas e fictícias, não correspondem aos valores intrínsecos, porque as vezes elas expressam mais a anti-hierarquia do anti-sistema do que a hierarquia do sistema.
 

Mas em outros campos também a evolução procede do caos à ordem No plano social, o legislador humano repete o gesto de Deus, que enquadra a Sua criação na Lei. Legislador a principio armado de sanções ferozes e do terror das penas, para depois apoiar-se, cada vez mais, na convicção, na consciência da utilidade de seguir a lei. Assim se avança para a livre e espontânea observância, que substitui a coação. 

Quanto mais compreensivo se faz o indivíduo, tanto menos severa se torna a disciplina, transformando-se sempre o legislador mais em amigo que ajuda do que em um opressor. Assim também a idéia de Deus legislador abranda-se nesse sentido, com o progresso da consciência dos povos. Desta forma se compreende como o terror de um inferno feroz e eterno, ainda que, em Deus, essa idéia ofenda o princípio fundamental do Amor, tenha sido e seja uma necessidade psicológica para disciplinar o involuído.
 

A visão do sistema, acima exposta, explica-nos, também um outro fato, ao qual já acenamos no Cap. III "Egocentrismo". Por que o método do mal é o de oferecer primeiro a alegria e depois afogá-la na traição da dor, enquanto o do bem, ao contrário, é exigir primeiro o esforço, para em seguida dar a justa e proporcional recompensa? Tudo agora se torna lógico, pois que se trata de posições opostas, nos dois pólos contrários do sistema. 

Os métodos, efetivamente, são de oposição entre si. O primeiro consiste em sacar o gozo a crédito, sem a intenção de pagar, método desequilibrado, desonesto, irresponsável, adaptado à consciência do involuído que, em sua ignorância, é levado a fraudar, porque o crê possível e útil. 

O segundo antepõe o esforço à alegria, a fim de que tudo seja merecido, método equilibrado, honesto, de quem se sente responsável; método consentâneo com a consciência do evoluído, levado, por haver compreendido, a proceder com justiça, certo de que sé ele é útil e de que o contrário é nocivo. 

No primeiro caso gera-se a confusão tanto para o indivíduo como para o sistema; no segundo, a sinceridade está em toda parte. Cada qual coloca-se em um dado ponto do sistema, segundo a própria natureza. 

Se for involuído, permanece na periferia com um tratamento relativo ao seu nível; se for evoluído, ascende ao centro com resultados opostos. O sistema subverte-se tanto mais, quanto mais periférico for o ser.
 

Avizinhando-nos do polo negativo do ser. A livre lei moral do evoluído involve de tal maneira que se precipita no determinismo da matéria. Já no fim cio Cap. V dissemos que Dante colocou Satanás no fundo do inferno, no centro da Terra. 

Aqui a condensação física é máxima, como o é a pressão gravítica, ao passo que o purgatório se eleva do lado oposto, utilizando, como na técnica reconstrutiva do sistema, o material produzido pela ação do mal, para caminhar rumo ao céu, ao bem, espiritualizando-se, à medida que se distancia da matéria. 

Assim, também na concepção de Dante, o abismamento de Lúcifer é um meio para a formação do purgatório, instrumento do bem, meio de expiação. 

Desta forma, o mal, em última análise, torna-se um meio utilizado para a libertação do próprio mal. Os produtos da ação do mal, que escavou o abismo na Terra, servem para a edificação de um monte fora dela, no qual se prepara para a realização dos fins do bem.
 

Se soubéssemos ver em profundidade, poderíamos bem dar-nos conta deste fato, que se repete em tantos eventos de nossa vida, pelo qual o mal acaba por gerar o bem.
 

Os nossos juízos sobre a ação divina se detém na superfície e se limitam ao momento, e, pretendemos com eles concluir a respeito dos problemas que desconhecemos, frequentemente, algumas construções não se podem conseguir a não ser por reação, pois a do mal é o impulso a que o involuído mais obedece. 

Então, a força mobilizada não pode ser o bem, mas o mal. Por isso, as guerras, que parecem tão inúteis e homicidas, são muitas vezes úteis para determinar entre inimigos, que de outra forma se odiariam, a necessidade de coalizão com o objetivo de defesa comum, levando-os à unificação, uma das grandes vias evolutivas, que nos conduzem a Deus. 

A sabedoria da Lei, com frequência, se revela em excitar as nossas possibilidades latentes para que o bem, que está dentro de nós, possa aflorar pelo nosso esforço. Por isso, os assaltos exteriores do mal e da dor agem sobre todos indiscriminadamente. 

O efeito é que difere, dependente sobretudo da reação que a natureza de cada qual estabelece. Se o indivíduo for um involuído, tudo para ele pode tornar-se instrumento de perdição; ao contrário, se for evoluído, tudo se lhe transforma em meio de elevação. O primeiro, vendo-se acuado pelo mal, reage com o mal, descendo mais ainda. O segundo reage com o bem, elevando-se. 

A mesma força pode, assim, produzir dois efeitos opostos, conforme o ser com que colide, mas, em qualquer caso, pondo a descoberto a natureza do indivíduo. Isto significa tendência a aumentar-lhe as qualidades, sejam quais forem elas, tendência a assim resolver o dualismo da existência, quer para o bem, volvendo a Deus, quer para o mal. onde o ser se anula longe de Deus. 

Isto patenteia-nos que a fratura dualista do sistema tende verdadeiramente a consolidar-se, fundindo-se no Uno originário, que se reconstitui integralmente na sua primeira unidade. 

É verdade que o sistema fracionou-se, mas no seu seio permanece a imanência da Causa Primeira que o gerou, a qual representa um impulso permanentemente ativo na sua reconstituição integral.
 

É assim que tudo, inclusive as forças negativas, são compelidas pelo sistema a cooperar na reconstrução positiva. Qual maior prova do que esta da apenas aparente corrupção do sistema e da sua substancial integridade permanente? 

Se em seu aspecto exterior o nosso universo parece degradado, entretanto, na sua estrutura íntima ele é são e poderoso, equilibrado e sábio, incorrupto e perfeito, mesmo que os seus elementos negativos, pareçam funcionar com resistência; que em última análise, agem como elementos positivos colaborando à sua maneira, com sua natureza invertida, efetivamente para o restabelecimento e triunfo do sistema. Eis a que função criadora está votado um erro que poderia se nos afigurar irreparável! 

A íntima e divina potência criadora não se extingue e tudo sabe criar de novo! Neste sentido, dizemos que em nosso universo a criação é contínua, isto é, Deus, no Seu aspecto imanente, está permanentemente em atividade na obra da Sua reconstrução.
 

Que maior maravilha do que um sistema invertido no exterior, na forma, mas que possui, em seu âmago, uma alma, representada por Deus e por Suas criaturas obedientes, capaz de endireitá-lo e restabelecê-lo, fazendo de uma ordem decaída no caos, um caos que se reconstitui na ordem de um sistema orgânico? 

Que há de mais extraordinário que, num universo em que tudo está fragmentado e degradado, fazer dos escombros um excelente material de construção e das ruínas erguer um esplêndido edifício? O bem é tão central e forte no sistema que será sempre o senhor.
 

E o pobre mal rebelde, acreditando-se vitorioso, é reduzido à banca de prova na oficina do bem. Outra alternativa não lhe resta senão a de anular-se espontaneamente, reconhecendo-se errado, para aderir ao bem, ou de consumir-se até o anulamento, cedendo toda a substância de que se constitui ao seu inimigo, o bem. A rivalidade só colima um objetivo — o da pacificação. 

É assim que o erro da criatura é honestamente guiado para a sua automática superação. A criação desmoronou nas trevas mas em sua profundeza permaneceu muita luz. 

O espírito caiu no mal, mas em sua intimidade ficou o bem. Satanás desviou de Deus muitas almas, mas no interior delas Deus continua vivo, agitando-as para reconduzi-las a Ele.
 

Que sucede, podemos agora indagar, quando um homem pratica o mal? A técnica do sistema, como acima foi observado, diz-nos que ele, crendo na sua ignorância praticá-lo em seu favor na realidade opera em seu detrimento. Praticar o mal significa dispor-se a marchar contra a corrente do sistema, introduzir-se na corrente inversa, isto é, significa enveredar pela via ela autodestruição. 

A vantagem imediata poderá dar-nos a ilusão de vitória mas e necessário ver o que se paga por ela, o que ela nos vem custar em nossa ruína espiritual, isto é, em demolição de nosso "eu" . E isto significa inversão de todos os valores da vida, significa expulsão e isolamento do sistema. 

Então, neste, do qual não se pode sair porque ele é o Todo, do qual nem mesmo Satanás conseguiu sair, assume-se uma posição inversa, em que a riqueza se transmuda em miséria; o conhecimento em ignorância; a liberdade em escravidão; a alegria em dor etc. E, efetivamente os triunfos do mal são efêmeros ainda que as aparências momentâneas nos iludam. Não nos estagnamos no presente. 

A vida eterna é longa e em sua extensão tudo se paga. Quem entra na corrente sinistrógira, por mais que seja o seu poder como centro autônomo, está sempre cm uma corrente que tem contra si todo o universo. E também Satanás, o máximo rebelde, poderá vencer Deus?
 

Vitórias encerradas no tempo, maculadas de traição e prestes a ruir, porque fazem parte do sistema da revolta e do desmoronamento. "Portae inferi non preavalebunt". Quem pratica o mal, isola-se no Todo, e é envolvido pelo sistema para corrigir-se ou é combatido pela anulação, qual tumor patológico. 

Qualquer que seja a vantagem aparentemente obtida, a posição que dela resulta é um grande malefício para o ser, e os de quem a escolhe. Eis de como o mundo moderno, por não haver compreendido nada da estrutura do universo, está laborando em próprio dano. 

E terá de pagar por si mesmo, como é lógico no sistema. Ainda não aprendemos a compreender que toda infração da Lei é uma subversão parcial do sistema, que toda culpa que se repete estabelece a inversão das correntes das forças do bem nas do mal, em nosso prejuízo. 

Não conseguimos ainda entender que assim nos ligamos cada vez mais á dor, colocando-nos em uma posição revirada, de que não é possível sair, senão endireitando-a, com o próprio esforço. 

Assim se explicam tantos destinos carregados de impulsos negativos, que não podem cessar de atormentar-nos, enquanto não forem completamente exauridos.
 

O conhecimento da estrutura do sistema e de nossa posição nele, explica-nos o porquê da forma que assume em nosso mundo humano esse fator fundamental que é o Amor. É natural que em um sistema corrompido, tudo ofereça o seu contraste em mal e dor. 

Do eterno e divino Amor, ao qual se deve a gênese de todas as coisas, no grande naufrágio do ser, só ficou uma pobre caricatura dele, aqui na periferia em que nos encontramos. 

O seu produto tornou-se caduco; a vida que ele gera não é a vida eterna criada por Deus, mas uma vida fragmentada sempre ameaçada de precipitar-se na morte - a vida do corpo, a vida na carne. 

Do amor humano, que é uma corrupção, uma derivação involuída do Amor-divino, só pode emanar uma gênese imperfeita, continuamente contrastada pelo mal e pela dor. 

Mas não nos esqueçamos de que no interior da forma remanesceu a originária centelha do ser da gênese divina, o espírito "que não nasceu do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas sim de Deus", (João: 1-13). O amor se avizinha da incorruptibilidade originária, quanto mais evolve da matéria, sabe subir da forma corruptível ao espírito. 

Somente os produtos do amor feitos mais com alma do que de corpo podem resistir à destruição que o ser encontra na periferia, por serem o resultado de um processo genético menos periférico, qual a carne, e mais central, qual é o espírito, mais próximo de Deus. Só o amor feito de alma pode sobreviver à morte do corpo.
 

A própria forma que o amor assumiu na criatura nos fala de um universo desmoronado. Com a queda tudo se desmoronou, inclusive o amor. O indivíduo é, assim, incompleto, uma metade. O ser completo forma-se de dois sexos, as duas metades que, reunindo-se, reconstituem a unidade cindida. 

Sozinho, o eu deve sentir-se mutilado e perenemente à procura do termo oposto, somente com o qual pode completar-se, voltando a ser uno. Só assim se pode chegar à recomposição da unidade partida, atingindo-se, através do amor, a gênese criadora. Quanto mais periférico o ser, tanto mais separatista, isto é, egoísta no amor, que assim é sempre menos amor.
 

Quanto mais central for o ser, tanto mais é unificador, isto é, altruísta no amor, que assim é sempre mais amor. O Amor é o centro do universo! O amor evolve do egoísmo para o altruísmo, em vastidão, profundidade, potência e prazer. 

Ele deve tornar-se cada vez mais semelhante ao Amor de Deus e, quanto mais se lhe aproxima, tanto maior o seu poder criador. 

O amor egoísta, pelo gozo próprio, que o caracteriza, é um amor separatista, é a contradição de si mesmo, é um amor degradado, encerrado em si próprio, em um mar de ódios, um amor que, distanciado de Deus, cresce em poder destruidor e involve para a autodestruição.
 

Quanto mais a criatura inverter o modelo que deve imitar, tanto mais ela se põe fora da Lei. Esta, então, se houve abuso do prazer, contrai-se e nega o amor. Fica, então, fragmentado, tornando-se o outro termo inacessível. 

Nascem, assim, em ambos os sexos os invertidos cuja personalidade tem os sinais opostos aos do seu corpo. Deste modo a Lei se revolta contra eles, como eles se revoltaram contra a Lei.
 

Qualquer violação, seja do gênero que for, nos coloca em posição inversa, condenados à carência correspondente ao abuso O ser se deforma, não a Lei. Ele permanece estropiado no patológico, vulnerável, portanto. O mal fere aquele que o faz, não aqueles para os quais foi feito. 

Pretender gozar farta e ilicitamente significa privação futura, a consequente e proporcionado sofrimento de recuperação. Impõe-se depois a reconstrução na Lei, em que se deu a demolição, reconstrução com a própria dor, que outra coisa não é senão a originária alegria de existir, invertida pelo ser rebelde. 

À via da desobediência a Lei é a da autodestruição, pois que a Lei é a atmosfera de Deus, sem a qual falta ao ser a respiração da vida. 

E o homem, porque mais evoluído e, portanto, mais livre que o animal, pode pecar muito mais e por isso mais sofrer, porque mais conhece, e mais ainda deve aprender a conhecer, tornando-se cada vez mais ativo e responsável na Lei por ser cada vez mais investido na função de piloto da própria nave.
 

A morte e a dor são o tributo de todas as formas periféricas de vida e por conseguinte, também da vida terrena. Outro meio não existe de fugir a essas trajetórias extremas do sistema, se não restringindo-lhe as órbitas com o avizinhamento do centro, isto é, com a retomada da posição direita. 

Em nossa zona de vida, a corrupção do sistema acarreta a impossibilidade da afirmação do “eu sou”, que constitui a existência, a não ser pela negação intermitente desta, que é a morte.
 

Não se pode chegar ao ser, senão percorrendo o não-ser em etapas inexoravelmente ligadas à própria inversão, qual se desejou. Mas persiste o ser, que não pode morrer, porque é eterna centelha divina. 

Não pode morrer definitivamente como tal. Mas, entretanto, se deve viver, só pode fazê-lo de maneira fragmentária periodicamente submetido ao retorno agoniante da morte e do nascimento. 

Eis a vida, originariamente una e agora assim despedaçada. Essa precariedade, contudo, é a qualidade que lhe faculta a evolução, como único meio para que de cada vez ganhe em perfeição. 

O dano é, assim, ao mesmo tempo, remédio. Eis o doloroso ciclo incessante da vida e da morte, das sucessivas reencarnações, de que só a evolução espiritual nos poderá libertar. Na Terra, o princípio do “eu sou” (vida) mesclou-se ao do “eu não sou” (morte). 

A Lei impõe que a unidade fragmentada se deva refazer laboriosamente, através da dolorosa operosidade da existência:  

nascer e morrer, para renascer e tornar a morrer. 

Esta é a lei atual. O amor, igualmente, nessa zona do ser assumiu a cor dominante. Como se vê, há uma razão profunda pela qual o parto deva ser doloroso, mas não de ordem apenas fisiológica. 

E que a gênese criadora não somente tem de dar uma vida fragmentaria, mas também de cumprir-se em posição negativa de dor, isto é, às avessas do originário em Deus, em que a gênese é alegria. E o pouco de prazer que ficou no amor sexual não passa de uma ruína, de um fragmento uma antecipação da originária felicidade de criar em Deus. 

A alegria vem antes, e a dor depois, por isso mesmo que aqui continua a repetir-se o motivo originário da inversão, pelo qual a divina alegria de criar foi substituída pela dor da queda. 

A dor é ulterior, como uma traição, tal qual se deu com a revolta e segundo já vimos ser a regra na periferia, reino da ilusão, onde o mal nos embala primeiro com a miragem do prazer, para depois nos abandonar em um corpo que, apesar de mantido unicamente por este último raio da divina emanação, corrompe-se e não resiste. 

O nosso mundo, tão ávido de prazeres, mas ignorante na arte de saber buscá-los, não imagina absolutamente que o místico, em seus amores espirituais para com Deus e Suas criaturas, é o mais sábio e o menos iludido entre os gozadores.
 

Eis a grande condenação do ser decaído:  

só poder participar da divina alegria de criar, através da dor. 

"Crescei e multiplicai-vos", mas não para gozar, como crê o mundo, mas para atravessar a dor e assim percorrer o duro caminho da ascensão.
 

Cresça e se desenvolva a vida! Esta foi a lei que ficou, mas ralada na dor! Sede falanges, atados a roda da vida e da morte e que o ser aceite o prazer sexual, que o convida a  suportar as agruras restantes! Deus bendiz a união dos sexos, mas. . . Existe o grande "mas", pelo qual o homem inconsciente não suponha que, ao casar-se, vai ao encontro de alegrias da vida, mas sim do sacrifício de evolver e fazer evolver. 

O verdadeiro conteúdo do matrimônio é levar o amor a evoluir da sua forma egoísta, que pede prazer, à altruísta que, em dor e tormento, dá por amor não a si, mas aos outros. 

E desta forma que o amor se avizinha de Deus, elevando-se do plano animal à função evolutiva de reconstrução espiritual do ser. Quem cria apenas para o próprio prazer, mergulhará cada vez mais na dor, cada vez mais repelido para a periferia do sistema. 

Quem usar a inteligência, centelha divina, para fraudar a natureza, acreditando que espertamente lhe possa furtar prazer, inverter-se-á ainda mais dentro do sistema, e agora sabemos o que isso significa. 

Eis como, do grande movimento da criação, acima examinado, chegamos aos casos da vida que mais de perto nos tocam. Vemos, assim, de que longínquas origens cósmicas provém a lei moral, que regula a nossa conduta de cada dia. Redenção, ela é o nosso tributo, também no amor, que, entretanto, é a nossa maior alegria. 

O instinto fundamental do ser é criar, eco longínquo do primeiro impulso que Deus imprimiu a todos os seres e por eles repetido, revoluteando continuamente no mesmo ciclo e esquema fundamental do universo. Instinto irrefreável e que, contudo, termina na dor, mais não se poderia dizer sobre o instinto que leva à alegria e a fatalidade que conduz ao sofrimento, pois que este é o fundo da taça de todos os prazeres humanos. 

Um impulso irresistível impele-nos para a vida compele-nos a gerar, mas lhe obedecemos apenas para alimentar a morte. Não é este o último termo de toda a gênese humana? 

Esta é uma gênese que se exaure, se cansa, porque está ruída a originária potência divina que lhe concedia indestrutibilidade. Tudo na Terra se desgasta e exige contínua restauração. 

Iludimo-nos pensando em reviver nos filhos e nos netos, mas o tempo se encarrega de tudo destruir, tanto nós indivíduos, como nossa progênie, e tudo se desfaz no pó de todas as coisas, até à última recordação. 

O ser, aterrorizado em face do sacrifício de viver em uma existência despedaçada, em que o instinto originário é permanentemente traído, poderia furtar-se à vida. Mas também deste lado não é possível evasão. 

Estaria na condição de um faminto que, não podendo saciar-se na copiosa refeição que anseia, recusasse uma côdea de pão e preferisse morrer de fome. Uma recusa à própria vida ou a gênese de outras, significa distanciar-se ainda mais do centro, é uma aproximação maior do anti-centro do negativo; significa pôr-se a caminho do aniquilamento. 

É culposa, por conseguinte, uma castidade egoísta, cujo escopo é conjurar encargos e enfados, mas é santa uma castidade física que sacrifica os prazeres do sexo, para dar-se à gênese espiritual, em que a criação passará dos corpos para a alma, elevando-a para o centro - Deus. 

Somente nesta condição é lícito retirar-se da vida, porque realmente a ela se retorna em escala ainda maior. Assim um ser pode ter milhares de filhos, pois que a renúncia alcançará então uma proliferação, cuja intensidade a natureza desconhece.
 

Entramos, de tal forma em uma trajetória mais vizinha do centro, na qual as posições invertidas começam a endireitar-se, em que o sacrifício vem antes e a alegria depois e onde a gênese produz frutos que não temem a morte, porque eles mesmos continuam a gerar indefinidamente no tempo. O homem que lança uma idéia para o bem do mundo é um pai espiritual de uma capacidade genética desconhecida no plano material.
 

Estas são as leis da vida. Violá-las só pode acarretar dano ao violador. A vida é irrefreável impulso divino - O suicida é o maior negador de Deus, porque quem atenta contra a Lei é assassino também da própria alma. 

A vida quer expandir-se para voltar a ser o que era - infinita. A vida quer retornar à unidade. A união dos sexos tem o seu rito próprio e celebra, ainda que em forma profundamente reduzida, a conjunção final na unidade, dos dois semicírculos do grande ciclo do ser:  

o involutivo e o evolutivo, o momento supremo da reconstrução, o triunfo final da gênese divina. 

E assim que os seres, por instinto de unidade, se atraem. À solidão é terrível. Por isto, a vida procura a vida, as multidões atraem multidões. A segregação do convívio humano, como no cárcere, é punição e dor. E quanto mais involuído for o ser, e é mais fracionado, tanto mais se sente só e mais procura uma companhia.
 

Quanto mais espiritualizado for ele, mais evoluído, por conseguinte, tanto mais sente a vida universal por toda a parte, e menos se sente só em qualquer solidão aparente.

Ao concluir este capítulo, procuremos compreender o grande alcance das consequências práticas a que nos conduz a concepção deste volume. Tudo nos demonstra a verdade do quanto acima dissemos, isto é, que se o sistema desmoronou, permaneceu no fundo dele a imanência da causa primeira que o gerou e que está em nós sempre presente e ativa, para reconstruí-lo.
 

No piano físico, efetivamente, que é, em última análise, a “vis sanatrix naturae” [8], senão a expressão de Deus imanente? 

Ele está em nosso interior sempre atento à restauração da forma, que é protegida, porque é manifestação de vida no plano em que devemos elaborar-nos, para reerguer-nos. 

No fim do Cap. XV "Ã procura de Deus", concluiremos, descobrindo o divino na profundeza do nosso "eu". Sabemos que não é possível existir em nosso universo a não ser como um vir-a-ser. 

A criação não é um fenômeno estático, mas de incessante formação, que não se pode reger, nem se explicar sem esta permanente e operosa presença de Deus no Seu aspecto imanente. Quem mais poderia assim tudo reconstruir? 

E verdade que a morte ameaça continuamente a vida, mas é verdade também que quem acaba vencendo é a vida, reduzindo a morte a um meio de renovação, que é justamente o que determina a evolução, que avança para a superação da morte.
 

Esta presença de Deus patenteia-se não só no campo físico, como também no moral. Fala-se de impulsos reativos da Lei ao nosso erro que se chama culpa. 

A idéia do pecado leva-nos à concepção de que ele implica uma punição, quase uma vingança de um Deus, que com isto egoisticamente defende a Sua ordem violada, defende a justiça por Ele representada, em suma, mais a Si próprio do que a criatura. E assim, para nós, se explica a dor. Isto, porém, não basta. Agora podemos compreender melhor que se trata de um remédio que nos cura e de uma escola que nos instrui. 

A reação da Lei significa a salutar intervenção de Deus imanente a infligir-nos uma dor proporcionada e adequada ao fim, para que, através dela, o sistema possa reconstruir-se precisamente no ponto violado e assim o ser possa reentrar no binário da sua salvação. 

Todos os nossos males não passam, pois, de expedientes corretivos para retificar posições erradas por nós assumidas, e para ensinar-nos a viver na ordem divina, onde só pode haver felicidade. 

Assim, em qualquer campo, este impulso divino interior e restaurador nos acompanha para curar-nos. A própria moléstia é sua reação para sanar o nosso corpo. E quando o dano ultrapassou os limites permitidos, e a ordem (saúde) não se pode mais assim rapidamente restabelecer, essa mesma força, a que denominamos natureza, resolve, igualmente o mal, de maneira mais radical, por meio da morte, que permite recomeçar a vida sadia de novo.
 

Desta forma, no campo moral, todo excesso de abuso é compensado por uma proporcionada e específica carência. Mas, não basta dizer que isto é justiça e reconstrução da ordem. 

É necessário dizer, também, o que mais nos interessa, ou seja, a razão pela qual a dor nos flagela e essa reside no restabelecimento que opera em nós mesmos, para fazer-nos volver à ordem, onde somente podemos ser felizes. Com o erro não violamos apenas uma Lei que pertence a Deus, mas demolimos a ordem em nós, a ordem que é a nossa felicidade. 

E Deus não pensa egoisticamente na reconstrução da Sua ordem violada, mas sim em nosso bem estar, obrigando-nos, pela dor, a reconstruir ordem e felicidade. Uma conseqüência prática importante de tudo isto e a seguinte: 

é verídico que
devemos nascer e viver, como já dissemos, quase sempre para sofrer, porque esta é a escola da necessária reconstrução que nos incumbe.
 


É certo, também, que esta dor é lição e não vingança, querida por um Deus bom em vista, não do Seu, mas de nosso interesse, de nosso bem. De tudo isto se depreende que ela deve ser dosada, isto é, diminuir quando superiores às nossas forças, pois que a vida, que é sagrada, jamais deve ser ameaçada. Isto porque a dor não é reação cega, punição que esfacela, mas constrição ao esforço que educa e endireita. 

Nas nossas dores devemos ter sempre presente que não estamos tratando com forcas inimigas e inconscientes, tuas com forças boas, justas e sábias A dor, pelo contrário, se bem compreendida, deve fazer-nos sentir mais próxima a presença ativa e salvadora de Deus imanente, ao Qual mais nos devemos unir. 

Que maravilha para o intelecto e que conforto ao coração chegar a compreender que a dor é um ato de amor com que Deus nos agracia para induzir-nos a retomar o caminho certo de nossa felicidade, que havíamos abandonado!
 

Então, o intelecto compreenderá porque efetivamente as provas jamais podem superar as nossas forças e como elas se desvanecem mal se tenha realmente aprendido a lição. 

Compreenderá porque a Providência costuma tardar tanto, salvando-nos somente no último momento, ao cairmos sob o peso da cruz. Isto porque é necessário antes esgotar todos os recursos na aprendizagem da lição. 

Uma Providência que no-lo poupasse, trairia o nosso restabelecimento e prejudicaria a nossa evolução. Enfim, o coração encontrará em meio à dor o imenso conforto do amor, sentindo Deus a seu lado, Deus que no Seu aspecto de Filho, de Cristo, ampara a nossa cruz e a arrasta conosco, compartilhando de nossa dor. 

Pois que Deus imanente desceu a sofrer na forma, no íntimo do "eu" da criatura decaída, para reerguer-se nela ao Seu aspecto originário e perfeito de Deus transcendente.


[7] - A frase foi extraída da VULGATA: "Portae inferi non preavalebunt adversus eam"; "As portas inferiores (do Inferno, do Hades) não prevalecerão contra ela", isto é? as forças inferiores, infernais não vencerão as do Bem. Ela faz parte do contexto evangélico de Mateus, 15:20, quando Jesus Cristo se dirigiu a Simão Pedro, em misteriosa e solene revelação, dando-lhe ciência de sua futura missão na Terra.
Aqui, Pietro Ubaldi atualiza o conteúdo dessa remota revelação, reafirmando que as forças do Bem jamais serão vencidas pelo mal. (N. do T.)

[8] - “A força curadora da natureza”. (N. do T.)