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01/12/2015


X

 

A TEORIA DO DESMORONAMENTO

E AS SUAS PROVAS

 

 

 

 

Procuremos neste capítulo responder por nós mesmos, a algumas possíveis objeções ao sistema acima exposto. 

Este é um controle racional a que submetemos os produtos da intuição ou da visão. 

Por um momento proponhamo-nos a rejeitar esta teoria, a que podemos denominar simplesmente teoria do desmoronamento, como explicação de nosso universo.
 

Devendo axiomaticamente admitir que Deus não pode ser imperfeito e mau, mas sempre perfeito e bom e que, por conseguinte, criou por Amor e não por ódio, como se pode explicar a presença do mal e da dor em nosso universo? 

E se, em absoluto se podem atribuir a Deus-Criador estas realidades, impõe-se procurar-lhes uma outra causa que não pode ser Deus. E aqui o dilema é fatal: 

ou essas tristes verdades são devidas à criatura e forçoso é admitir a teoria da queda, ou, se Deus-Criador - foi causa de tudo, Ele é imperfeito e mau. 

Uma bem triste cadeia de males pesa sobre o mundo. Este fato é indiscutível.
 

Queremos buscar-lhe a causa, o responsável. Podemos chegar à monstruosidade de tornar-nos acusadores de Deus, como causa de todos os nossos males? 

Podemos sentir-nos autorizados a amaldiçoá-Lo, como inconsciente e mau? 

Isto só poderá fazer quem segue Satanás, imerso no polo negativo, na ignorância e no mal. Jamais o fará uma mente iluminada, que sentiu a sabedoria, a perfeição e a bondade que reinam no funcionamento orgânico do universo.
 

Mas, ainda que a teoria do desmoronamento fosse errada, que significação possui a lenda, tão difundida no mundo, da queda dos anjos? 

Poderá ter ela nascido do nada? 

E com a Sua paixão, que poderia redimir Cristo, se a culpa era mais de Deus do que do homem? 

Por essa paixão a humanidade se redimiu, então, mais da falha de Deus do que das suas próprias. Isto sim, nos parece verdadeiramente um esboroamento do bom senso, ao ter que admitir que a humanidade deva sofrer tanto, que em virtude da insciência ou maldade de um Criador irresponsável ou perverso. Este seria o mais escandaloso triunfo da injustiça. 

Mas, desta forma, pomos um conceito negativo no centro do sistema positivo do ser; dessa maneira tudo se subverte, a vinda de Cristo à Terra carece de qualquer sentido, e, onde tudo é ordem, estabelecemos o caos de um universo em delírio. 

Então, o primeiro pecado original teria sido o de Deus e não o do homem, e a rebelião contra um Deus imperfeito, injusto e malvado seria mérito e não culpa. E a redenção, que é a retificação de uma posição invertida, que teria retificado? Talvez a justa revolta de Adão contra um Deus criador do mal e da dor? 

Como se vê, cai-se em um redemoinho de absurdos, em que tudo se subverte em uma horrenda concepção satânica.
 

Devemos axiomaticamente admitir em Deus também a unidade. Ora, o universo é inegavelmente dualístico. 

Como se pode explicar essa estrutura dualística em um universo cuja base deve ser unitária, se não com a teoria do desmoronamento?
 

Quem despedaçou o uno, como e por quê? 

É absurdo um universo dualístico desde a sua primeira essência, em seu centro. Se assim fosse, pelo menos os dois termos do dualismo - bem e mal - deveriam ser iguais. 

Como se explica, ao contrário, que o bem é mais forte, acaba vencendo, e que o Senhor é um só — Deus? 

Também aqui, se excluirmos a queda, tudo se confunde no caos. Então Deus se transforma em artífice de uma obra diabólica, e se confunde Satanás com Deus.
 

Abolindo a teoria do desmoronamento, não se sabe mais justificar a origem e a presença de Satanás. 

Quem é ele, então? 

Que significa no sistema do todo? De que nasceu, para o que tende e como acabará? 

Em um sistema lógico, como pode manter-se esse anti-Deus? 

Em uma construção equilibrada que significa hostilidade desse contínuo atrito demolidor? 

E que imperfeito universo seria este, sempre sujeito aos assaltos de um princípio destruidor, que se aninha em seu seio! 

Certamente o sistema deve parecer bem pobre e mal feito, concebido desta forma! 

E, no entanto, ele é pleno de obras que revelam uma sabedoria tão grande, que nem podemos compreendê-la no seu todo.
 

Repugna, de maneira absoluta, a um instinto fundamentalmente peculiar a todo ser de mente sã, admitir em Deus a criação do mal. Este só pode ter surgido depois, por outras razões. 

Não se podendo conceber duas criações, tendo que aceitar uma única. Como explicar que não encontremos tudo em perfeição e bem, ou então, uma imperfeição e mal, mas perfeição e bem de mistura com imperfeição e mal? 

É evidente essa duplicidade de princípios precisamente opostos. Isto não se pode explicar a não ser como a inversão de uma parte do sistema. 

E como no fundo da imperfeição encontramos a perfeição, isto é, uma sabedoria que possui a força de salvar a imperfeição da autodestruição, e de purificá-la reconduzindo-a ao estado de perfeição?
 

Evidentemente, deve ter ocorrido que Deus criou espíritos puros, tirando-os de Si. (A técnica da criação será progressivamente exposta neste volume e depois definitivamente precisada no início do Cap. XX: "Visão-Síntese"). 

Este era o sistema perfeito. Mas uma parte, como vimos, rebelou-se, formando o anti-sistema do dualismo. Ora, a parte incorrupta ficou a mais forte, porque com ela permaneceu Deus a Quem ela ficou aderente. 

A outra parte não tem Deus consigo, no sentido de que a sua imanência não pode funcionar, já que o ser o renegou. Por isto o mal não pode vencer. A vitória final, é lógico, não pode deixar de caber ao único senhor do sistema - Deus. 

Não importa que no Todo se agitem forças opostas! O sistema tornou-se inquinado de culpa, sofre para restabelecer-se, mas continua sistema - Ele não desmoronou no seu conjunto. Apenas uma parte dele, em seu seio, decaiu.
 

Mas, então, poder-se-á objetar - por que Deus, se é sempre o mais forte, o Senhor do sistema, não sana de vez o mal, anulando-o? 

Não basta que uma coisa se nos torne lógica e justa, por ser cômoda. Há necessidade de que, quem criou, compreenda. 

Nenhuma força pode ser destruída, mas apenas corrigida. Subsiste a lei de equilíbrio e justiça, em que se baseia o sistema que exige a sua reconstrução. Não é com a psicologia da própria vantagem imediata, relativa e utilitária, que se podem resolver tais problemas. 

Recordemos que nós não somos punidos pelas nossas culpas por um Deus vingativo, mas sim, automaticamente, por essas mesmas culpas, isto é, pelas forças por nós movidas e pelas posições que quisermos assumir no sistema. O mal não se pode extinguir por um ato arbitrário, pois que a Onipotência divina não é jamais arbitrária, mas segundo a Sua própria Lei. 

O mal só se pode extinguir por reabsorção, isto é, por retificação, pela reconstrução daquilo que ruiu. Só assim se explica como a dor pode redimir. Trata-se de um processo de cura. Eis por que a luta contra o mal é virtude, ou seja, é qualidade reconstrutora de bem. 

Se o nosso universo fosse, no estado atual, consequência pura do primeiro ato criador de Deus, ele deveria ser perfeito. Não o é porque a criatura nele introduziu outras forças. É da lógica, justiça e equilíbrio do sistema que a correção seja operada nas próprias criaturas que representam tais forças. 

É justo que o labor da reconstrução lhes caiba, como delas foi
a revolta à ordem. Somente assim elas poderão verdadeiramente aprender a conhecer a Lei cuja compreensão já revelaram não ter desejado. 


Como se vê tudo se desenvolve com cabal lógica. Muitos desejariam Deus como seu servo, e se lamentam porque Ele não lhes poupa o incômodo de trabalhar, lutar, sofrer e por isso O acusam. 

Mas é fácil compreender quanto é absurdo colocar as nossas pobres comodidades como centro do sistema. Não é com tais medidas que se pode medir, nem com semelhante psicologia que se pode compreender.

Prossigamos no controle racional, que nós mesmos estamos fazendo, dos produtos da intuição ou visão.
 

Alguma vez perguntamos a nós mesmos porque o estado primordial do universo é o caos? Se tivesse sido obra de Deus, deveria ser obra perfeita e não caos.
 

E, pela evolução. esse caos e o ponto de partida de um longo caminho que avança para a ordem. Somente com a teoria do desmoronamento tudo isto se torna compreensível. Satanás está nos antípodas de Deus, assim como o caos nos antípodas da ordem. 

O universo atual vai do primeiro ao segundo, os dois pólos do ser. Só com a precedência de um desmoronamento, isto é, com a existência da outra metade do ciclo, inverso e complementar, tudo se pode compreender. 

O que implica que, se uma parte ruiu, não o fez o sistema e que, no fundo do caos, Deus continua a estar presente, Deus que e a única força capaz de retirar uma nova ordem da desordem. 

Á reconstrução, se de fato é operada pela dor purificadora da criatura, é dirigida por Deus, o que é provado pela descida de Cristo à Terra. Unicamente assim se explica o porquê da evolução e sua direção, bem como a grande equação da substância (A Grande Síntese, Cap. IX). 

Agora podemos compreender melhor a fig. 4 de A Grande Síntese, que indica o desenvolvimento da trajetória típica dos movimentos fenomênicos. Esse diagrama sintetiza também o atual caminho da evolução, para reconquistar, entre dores e provas, o paraíso perdido. Este é o diagrama da ascensão. 

O desmoronamento ocorreu de $ +\infty \rightarrow -\infty $ . A reconstrução aqui sintetizada é de $ -\infty \rightarrow +\infty $ , ainda que para o nosso concebível ela agora é limitada ao trajeto $ \gamma \rightarrow \beta \rightarrow \alpha $

Na fig. 4 o desmoronamento das dimensões reduziu o Todo ao nada, ao ponto, sem dimensão. E este $ -\infty $ (infinito negativo), o ponto de partida da evolução, segunda metade do ciclo, a que vivemos atualmente. 

O ponto de chegada é $ +\infty $ (infinito positivo), sendo todo o processo dado pela dilatação do ponto, não dimensão, na dimensão máxima, o infinito.
 

Eis o mais profundo significado da abertura da espiral.
 

Mas a maneira como se processa o seu desenvolvimento nos diz algo mais. Na sua tendência periódica para volver sobre si mesma em direção ao centro (v. a mencionada fg. 4 - A Grande Síntese), expressa também na fig. 2, pela descida da linha quebrada, vemos como que um rítmico, ainda que parcial, retorno ao desmoronamento, como que uma recordação sua ou tendência a repetir-se, que no-lo revela em ação, imiscuído no funcionamento do universo, desde a primeira revolta e desmoronamento. 

Essa característica impressa, indelevelmente, nos fala como uma testemunha. Todavia, o movimento retoma sua direção e, no conjunto, consegue subir, sempre contrastado e em luta com a descida. 

A subida prossegue, isto é, a evolução vence, ganhando terreno em cada ciclo, ainda que em todos os ciclos o primeiro desmoronamento volte a se fazer sentir como um assalto do mal, mas depois vencido e superado. 

Assim é, porque o sistema no seu conjunto não é o sistema de Satanás, mas o sistema de Deus. Deus, como vimos, permaneceu centro de tudo, enquanto o sistema de Satanás tem por centro $ -\infty $, o nada, o ponto não dimensão, razão por que, para ele, a existência só pode significar anulação. 

O sistema positivo de Deus, embora contendo o sistema negativo de Satanás é mais forte de que ele. O outro sistema está contido e é mais fraco, irremediavelmente minado pelo seu negativismo. Por isso se pode dizer une o bem deve vencer e:  

"Portae inferi non prevalebunt".

O motivo do desmoronamento imprimiu-se, assim, tão profundamente no sistema, que o vemos ressurgir em todo lugar, a cada momento. Um estigma dualístico inquina e fragmenta toda a nossa vida. A vida una íntegra, esboroou-se em um ritmo alterno vida-morte:  

ao dia se contrapõe a noite; à luz, as trevas; a cada afirmação, a sua negação. 

A vida não se pode prolongar no tempo, senão continuamente invertendo-se no negativo, que a mata, vida que continuamente se despedaça, por efeito da queda. Bastaria isto, apenas, para provar a reencarnação.
 

Mas no fundo da morte (Satanás), está sempre Deus. Que é a vida o princípio pelo qual ela jamais se extingue. 

Assim como o imutável absoluto desmoronou no imutável contingente - que justamente por isso faz presumir a existência do primeiro - assim também a existência eterna corrompeu-se na existência no tempo, que a mede e a pulveriza em um ritmo interrompido por pausas opostas.
 

Eis, porém, que Deus, a força restauradora presente na evolução, tende para a correção do desmoronamento. A vida evolvendo, transfere-se cada vez mais do plano físico para o espiritual. 

Desta forma, cada vez mais também há tendência ao desaparecimento do lado negativo - morte - como igualmente do mal e da dor, com o retorno a Deus na reconstituída unidade íntegra da vida, que não tem mais morte.
 

Mas tudo rui por terra. Cada alegria ameaça inverter-se em dor, parecendo ter nascido envenenada pela recordação do primeiro desmoronamento. 

Para continuar, a vida deve refazer-se desde o começo, na semente, no filho. Tudo nos dá idéia de alguém que, subindo uma encosta em terreno resvaladiço a cada três passos para diante, dá dois passos para trás. 

Recua, mas um passo ganha sempre, e assim a evolução avança, avizinhando-se cada vez mais, ainda que lenta e fadigosamente, da libertação. É longa e dolorosa a elaboração evolutiva. 

Mas é verdade também que o elemento negativo está submetido a um atrito contínuo, em face da resistência que opõe à força, mais poderosa, de Deus, motora da ascensão. 

O elemento negativo assim se desgasta, autodestruindo-se e cedendo, como já vimos, da sua substância à parte positiva. A sensação desse atrito de forças opostas chama-se dor. 

Mas, por isto ela redime, mata o mal, ilumina as trevas, reconduz à alegria, à unidade findando o dualismo, retificando o negativo em positivo. É este atrito que se chama dor que reconstrói o lado desmoronado do sistema e, por isso, constitui a base da evolução, ascensão para a felicidade.

Tudo isto evidencia a necessidade de aceitar a teoria do desmoronamento. Só ela pode explicar o dualismo dá árvore do bem e do mal, o pecado original — continuação da revolta dos anjos e queda consequente, pecado cometido por Caim contra Abel, primeira personificação da cisão e da luta. 

Só assim podemos compreender Cristo e a Sua obra de redenção, destinada a sanar este dualismo, compreender a inversão operada pelo Evangelho, que e uma retificação dos valores.
 

Assim podemos explicar por que a Terra é o reino em que o mal triunfa e os bons sofrem, porque a seleção é nela operada pelo critério selvagem do mais forte. 

Sem a teoria do desmoronamento nada se explica, tudo é caos e mistério. Todavia, ainda se lhe pode levantar uma objeção. Pretendemos complementar aqui os conceitos expostos no fim do Cap. VII:  

"A perfeição do Sistema".
 

Admitida a liberdade individual e a revolta, deve-se admitir também que um espírito possa conservar-se eternamente rebelde. 

Ele teria, então, o poder de macular definitivamente o sistema, frustrando-lhe o restabelecimento e toda a obra de salvação de Deus e dos redentores por Ele enviados. A obra de Deus não seria, então, sanável e, em última análise, estaria falida. Tudo isso é lógico. 

Bastaria que se verificasse o caso para uma só criatura, e o mal, em definitivo aninhado no sistema de Deus, não seria vencido, tornando-se parcialmente vencedor. Conclusão absurda. 

A solução do dualismo deve, pois, ser completa e, por conseguinte, para que todo o sistema seja reconstruído e tudo retorne ao Uno, impõe-se a destruição final do mal. A anulação é a única expulsão possível de um sistema que é o Todo e fora do qual nada pode existir.
 

Agora surge a objeção da impossibilidade de admitir-se a destruição ou anulação do espírito rebelde. 

A isto respondemos que, como já vimos (Cap. VII), a mecânica dessa destruição se realiza por um processo de choques e atritos de forcas, nos quais o que perece não é a substância divina, indestrutível, que forma o espírito, mas apenas a sua forma de individualização como "eu" distinto, e isto em favor do sistema do bem, que se enriquece dessa substância. 

O que se anula é a individualização, a personalidade rebelde, o tipo de forma revestida pela substância e não propriamente a substância que a constitui. 

Trata-se, pois, apenas de uma destruição relativa ao indivíduo e não em sentido absoluto. Destruição como sua individualização e não como substância. Isto torna possível a anulação no caso extremo de uma revolta indefinidamente prolongada.
 

A esta altura, podemos perguntar qual poderá ser a sorte de Satanás e seus demônios. Após haver tratado do problema do fim do mal no Cap. X do volume A Nova Civilização do terceiro Milênio, ali lançando a semente dos primeiros conceitos, desenvolvidos melhor no presente volume; após haver precisado a técnica da destruição do mal em geral no Cap. VII: "A perfeição do sistema", deste volume, podemos propor-nos agora o problema específico da sorte de Satanás, a propósito da anulação dos espíritos rebeldes.
 

No Cap. II do presente tomo - "O eu sou, esquema do ser", acenamos para Satanás, como personificação das forças do mal. Mas será ele apenas uma individualização fenomênica qualquer em tudo que é personalizado, ou Satanás é uma verdadeira personalidade? 

Como personalidade queremos significar o que ela expressa para o ser humano. O leitor que compreendeu os elementos constitutivos de nosso sistema, dos quais a lógica não permite que saiamos, pode responder por si. Nós simplesmente lhe propomos o problema. 

A verdadeira criação foi única, a dos espíritos puros, isto é, a que Deus realizou em Seu seio, distinguindo-se interiormente em muitos "eu sou", feitos à Sua imagem e semelhança. 

O nosso universo físico não foi uma criação, foi um desmoronamento da criação. Os espíritos puros eram outros tantos "eu sou", semelhantes ao tipo originário - Deus - isto é, individualizações pessoais, como é o próprio homem. 

Todos os espíritos eram assim, nem havia razão para que fossem diferentes os que depois decaíram com a revolta. O próprio homem atual estava entre eles e, tendo uma personalidade própria, distinta, mostra-nos o que significa personalidade. 

O tipo fundamental do ser, como eu sou", não podia mudar apenas pela queda, como de fato não mudou para o homem, que é justamente um espírito decaído e que chegou às vezes até o grau de demônio. 

O desmoronamento do sistema podia alterar a disposição e posição dos elementos do edifício, mas o material permaneceu o mesmo, sem o que o edifício não se poderia reconstruir. Podia ofuscar, mas não alterar a essência pessoal do ser, porque isto teria significado destruir o tipo modelo, fato fundamental da criação. 

Não é concebível que a queda possa ter produzido uma despersonalizarão, pois que ela significaria uma anulação de personalidade, isto é, da individualização eu sou , o que só pode ser o último resultado de uma liquidação final de um rebelde indefinidamente em estado de revolta. 

Não se pode antecipar a sua destruição, sem comprometer todo o processo da reconstrução e redenção. É absurdo, fora do caso de tal liquidação final, a dissolução desse núcleo "eu sou , desse centro em torno do qual se desenvolve todo o processo do desmoronamento e da reconstrução. 

Somente um eu pessoal, definido nos seus atributos, pode involver e depois evolver; pode reconstruir-se, se quiser, ou então ser reabsorvido no sistema, pelo seu progressivo desgaste no atrito do anti-sistema com o sistema, consoante expusemos no citado Cap. VII deste volume. 

Unicamente um “eu” pessoal pode ser objeto de salvação ou instrumento da necessária anulação do mal, sem o que Deus seria vencido:  

sem um centro pessoal, um "eu", não pode haver mérito ou demérito, culpa, responsabilidade, experiência, evolução e retorno a Deus, ou, em caso contrário, anulação. 

Sem um "eu", tudo se dissolve no vago e nebuloso.
 

Considerando tudo isto, o leitor poderá agora responder por si à questão acima proposta. Mas é evidente que a solução cabal de qualquer problema não pode ser obtida, encarando-o isoladamente, mas somente quando ele tenha sido enquadrado em todo um sistema de que venha a fazer parte e em que todos os outros problemas do ser sejam harmonicamente resolvidos.
 

Procuremos, todavia, precisar os elementos do problema. Assim como em um espelho partido cada fragmento reproduz a natureza do espelho inteiro, trazendo também em si os indícios do estilhaçamento, assim igualmente no sistema desmoronado, cada unidade individual carrega consigo os sinais do divino princípio do bem, da mesma forma que os satânicos princípios do mal. 

Bastaria este fato, que é possível verificar a todo instante em nós mesmos, tão profundamente ele se encontra impresso em nossa natureza, para demonstrar que, nas raízes deste nosso estado e como explicação desta nossa estrutura, não pode deixar de existir uma queda original, da qual se gerou este modelo de tipo dualístico, que se repete em todas as individualizações menores. 

É assim que o princípio da queda se conservou presente em todo ser decaído. 

E é lógico e justo que cada ser, já que é um momento do sistema desmoronado, carregue consigo os estigmas do desmoronamento e a estrutura do sistema desmoronado. 

E por isso justamente que toda personalidade está dividida em duas partes opostas, ativadas por um dinamismo inverso, um divino e outro satânico, em contraste no campo do "eu". Foi assim que a indivisível personalidade do "eu sou" originário se cindiu no seu íntimo dualismo, e é neste exatamente que Satanás se aninha.
 

Analisemos tudo moto para melhor poder compreender o que deveremos realmente entender por personalidade de Satanás. 

Ele é personificado no sentido de que existe em todo ser como princípio negativo, se equilibra para contrastar o princípio positivo, com o qual está sempre em luta para dele se desvincular e se libertar. 

Esta luta é a base da evolução. A personalidade de Satanás está presente em todos os seres como princípio de trevas, enquanto Deus está presente neles como princípio de luz. Treva significa:  

inconsciência, matéria, prisão na forma, estado involuído. 

Luz significa: consciência, espírito, libertação, estado evoluído. Em outros termos, em nosso universo, não se encontra apenas a presença de Deus imanente, nele descido de Sua transcendência para salvá-lo, mas existe também o princípio oposto, filho da queda, isto é, a presença do mal ou Satanás imanente, sempre operante para tudo destruir e perder.
 

Em todo ser defrontam-se, em permanente contraste, o divino princípio do bem, fazendo evolver e subir, e o satânico princípio do mal, insistindo no desmoronamento e na descida. 

O último serve, assim, de resistência à evolução. É esta resistência que procura demolir todas as nossas conquistas, o que nós temos de vencer com o nosso esforço, intentando livre refazer em ascensão o mesmo caminho que livremente percorremos em queda. 

Somente com a queda pode-se explicar como o princípio do mal se aninhou no âmago do ser e lá permaneça vigilante para impedir a ascensão. 

Este princípio onipresente em nosso universo e personificado como o lado de trevas em qualquer personalidade é o que entendemos por personificação de Satanás, princípio que pode revestir-se de uma forma qualquer, assumindo consistência real. 

Não se trata de uma vaga abstração, mas de qualquer coisa de concreto que se encontra como força individualizada no ser que, na Terra pelo menos, sempre apresenta uma certa dose dela, maior ou menor. 

A percentualidade é que varia, sendo santo aquele em que ela for mínima ou nula, e demônio aquele em que ela se aproximar da inteireza. No caso máximo deste último tipo, quem sabe em alguma forma cósmica da vida, teremos a personificação concreta e real de Satanás.
 

Efetivamente, pode-se idealizar dele um tipo biológico mesmo na Terra. E isto realmente foi feito pelo homem representando o demônio com as características dos animais danosos, mais inimigos e involuídos, agressivos, com chavelhos garras ou bicos, traiçoeiros como as serpentes venenosas, escuros e peludos como o urso, com dentes de lobo, olhos ferozes e cauda, lançando chamas e enxofre, na representação de um mais antigo e elementar adversário, qual o fogo vulcânico da terra. 

Tudo isto é lógico e se justifica, porque Satanás simboliza a involução, isto é, a animalidade, que é o nosso passado, ou seja a matéria e o caos num reino subterrâneo, onde ele sempre se aprofunda, como nas representações que fazemos dele. Inimigo da evolução, que é progresso em direção a Deus e à felicidade, também é um inimigo da vida, representando tudo o que é agressivo e mau. 

Onde está este inimigo? 

Está em toda parte como Deus, junto de Deus como Sua negação, assim como a sombra está junto da luz e sem a qual não sabemos o que é luz. 

Satanás é a treva que se aninha em cada ângulo, no qual se ocultam o mal e a dor para nos golpearem traiçoeiramente. Satanás é o veneno depositado no fundo de toda taça, a dor sempre pronta para macular as nossas alegrias. 

É a moléstia que assalta a saúde, é a morte que espreita a passagem da vida. É a traição que está no fundo da amizade. 

É o ódio em que está prestes a transformar-se o amor. 

É o princípio de destruição que secretamente mina todas as construções humanas.

 É o princípio do mal que sempre busca manchar a obra do bem. É um princípio que toma forma concreta em atos e pessoas.
 

Durante as trevas da Idade Média, houve o domínio, inclusive no terreno religioso (inquisição, guerras santas, bruxarias) desse princípio de negação, em que Satanás prevaleceu. Por dois milênios ele tem reinado com o terror do inferno, construção sua. Tudo isto está escrito na hora histórica, para todos, e teve a tolerância da Igreja. 

E até hoje, mesmo no que respeita a Cristo, se tem atentado principalmente para o lado negativo e destrutivo da criatura humana, na crucificação que foi um triste espetáculo de carnificina, sem se olhar para o lado positivo e construtivo da ressurreição, eterna vida do espírito. 

Isto demonstra como Satanás está vivo entre nós, personificado em correntes, ações e pessoas. Satanás, embora como força invertida e negativa, está presente entre nós, como o está Deus, e eles se defrontam e se batem em nós, seu campo de batalha. 

Ainda que Deus, pela própria natureza do sistema, venha a ser o vencedor, esta batalha existe e a vivemos, em nós, sem sabermos que ela é a maior batalha do universo, que repercute em nós.
 

Em cada ato nosso, através da escolha que soubermos fazer, amadurece o nosso ser e avança a grande marcha da evolução. Em virtude dos atos e da livre escolha de todos os homens, opera-se o resgate, bem como a salvação. 

Graças a essa intensa elaboração em que se empenham todos os seres, ocorre a regressão ou a estagnação, ou a redenção do universo. Satanás exige que lhe paguemos em moeda sonante de dor o tributo de nosso resgate porque quisemos cair e, com a queda, o abrigamos em nosso interior.
 

Satanás está em toda parte do sistema desmoronado, é a doença do sistema, que o acomete e faz todos sofrerem. Também a parte incorrupta não se pode furtar a esta dor e, como fez Cristo, ajuda igualmente com o seu sacrifício. 

Mas é a parte divina, é a originária centelha de Deus, não extinta de todo e que permanece em nós, que deve lutar para restaurar a parte enferma ou satânica, da mesma forma que no organismo a parte sã luta, com os recursos vitais provenientes de Deus, para recuperar a saúde e reconstituir o equilíbrio. 

Quando em nós se defrontam, em ação, duas motivações opostas de bem e de mal, em que se pesam a vantagem, em forma de alegria, e o dano, em forma de sacrifício, estamos diante do maior drama do universo, que configurou o nosso tipo de existência e que retorna, repetindo, no caso menor, a apocalíptica luta do universo entre o bem e o mal.
 

Por uma lei de inércia, que é verdadeira também no campo moral, pela qual u'a massa, como uma idéia, continua a avançar na direção em que foi lançada, enquanto não encontrar uma força que a desvie ou um atrito que a freie, por essa lei em nós, Deus continua a gritar "eu", assim como Satanás grita "eu”. E assim que cada um de nós, mais ou menos, pode personificar um ou outro, segundo o grau de evolução. 

E quando o homem desce até ao delito, nele encontramos uma sempre maior personificação de Satanás. É fácil assim imaginar uma hierarquia na gradação dos valores invertidos em negativo, no mal, da mesma forma que há uma hierarquia dos valores positivos, no bem. 

Poderemos, desta maneira, idealizar, no ápice da pirâmide invertida, um Lúcifer, qual sublimação do mal elevado à máxima potência, assim como no ápice da pirâmide positiva está Deus, sublimação infinita das potências do bem. 

E como se pode explicar racionalmente a idéia tão difundida do anti-Cristo. Parecendo-nos, por ora, bastante clara esta argumentação sobre a personalidade de Satanás e seus demônios, concluímo-la com a verificação de estarmos assim diante de uma nova maravilha do sistema. Nele, de fato, o princípio do mal e da dor, que se faz sentir em tudo, é utilizado como uma dificuldade a superar, como uma escola para aprender e ascender. 

A realidade é que, embora Satanás e seu poder pareçam espantosos, o nosso universo está inteiramente impregnado da presença de Deus imanente, de modo que a vitória está garantida e as portas infernais não prevalecerão. Todo o grande assalto de Satanás se reduz a um exame das forças do bem, a um sangrento banho de purificação, do qual o espírito sairá triunfante.
 

Desta forma, encontramos não somente uma justificação para o mal e a dor, senão também o segredo para demoli-los, transformando uma infelicidade em um meio para conquistar a felicidade. 

Assim, o tremendo princípio do anti-bem e do anti-Deus se pulveriza em nossas mãos, onde, se somos sábios, em meio a tanta ruína não resta senão um instrumento de salvação.
 

A esta altura, nós nos perguntamos: 

será possível uma revolta eterna e definitiva? 

Agora podemos compreender o que significa essa indagação, isto é, a mácula da personalidade, até que o percentual dos elementos componentes positivos seja reduzido a zero e o percentual dos elementos componentes negativos seja reduzido a cem. 

Quando o "eu" fica assim reduzido, em sentido negativo, ele é = 0, isto é, ele se autodestruiu. Quando, ao contrário, todo o "eu" se reduziu, em sentido positivo, ele atingiu a salvação. No primeiro caso, ocorreu a morte total pela completa negação de Deus; no segundo caso, foi alcançada a vida total em Deus.
 

De tudo isso encontramos um paralelo na vida de nosso organismo, o que é lógico num universo dirigido por um princípio unitário. Antes de tudo, a difusa presença do espírito satânico do mal não nos deve espantar mais do que a presença dos micróbios patogênicos em nosso organismo. 

Quando ele está são, os micróbios não perturbam, mas quando as portas estão abertas, eles penetram o organismo no seu ponto vulnerável, porque débil. Também Satanás só pode entrar quando encontra uma porta aberta no espírito, isto é, um ponto vulnerável, porque débil. 

Se formos sãos e fortes no campo orgânico e no moral, podemos mover-nos sem perigo entre os micróbios patogênicos e as forças do mal. Em qualquer setor, a vida nos quer sãos e fortes, para que prossiga a evolução. atuando a Lei, que quer o ser caminhando para a perfeição e felicidade. 

Quem deve, paga, colocando a dor o ser no reto caminho, o da sua salvação. Tanto no terreno orgânico, assim como no espiritual, a Lei acorre para salvar, impelindo com as suas reações dolorosas o indivíduo a salvar-se. A Lei indiretamente se vale de todas as constrições compatíveis com o respeito à liberdade individual. 

Mas quando, apesar de tudo, o doente do corpo e o do espírito não querem de forma alguma salvar-se, eles, que desejariam fixar em sua personalidade uma permanente violação da Lei, que e inviolável, são por ela eliminados. Em outros termos, a vida mata os que se voltam contra ela. Se assim acontece, então nos perguntamos:  

que probabilidade existe no sistema, que possa verificar-se, não para o sistema, que é invulnerável, mas para o indivíduo, de um desastre, qual seja a sua anulação pela revolta definitiva?
 

Respondemos logo:  

Embora a destruição de um espírito seja possível, a probabilidade de semelhante destruição é praticamente teórica. 

 É verdade que o sistema é construído de maneira que possa chegar até aí, mas não está na lógica das coisas que um espírito se deixe arrastar até esse extremo. As razões são as que seguem:  

ser destruído é contra o interesse e a felicidade do ser, é agir contra o princípio do "eu Sou" que o mantém em vida.  

É verdade que o rebelde, tendo-se colocado no negativo automaticamente propende para essa anulação. Mas a arma da revolta, ele crava na própria carne e, quanto mais ele a utiliza tanto mais intensifica a própria dor. 

Ele tem de suportar um esforço cada vez maior, uma luta sempre mais feroz para insistir nessa via dolorosa, para contradizer o seu próprio instinto de felicidade, para afastar-se do que constitui o centro para todos e também para ele - de Deus. 

Poderão impeli-lo por essa via de perdição o seu originário orgulho, o espírito de revolta, a força da inércia, como massa lançada em ricochete, o mal e o ódio do que ele está feito. 

Mas o fenômeno deverá também atingir um ponto de saturação, pelo qual o interesse egoístico deverá prevalecer, pois que a dor, intensificando-se sempre, superará o limite individual de tolerância, e uma existência de ódio e de mal, cada vez mais distante de Deus, centro de felicidade, acabará por tornar-se impossível. 

Este será o momento crítico da inversão de rumo, da direção involutiva para a evolutiva. Então o ser se porá no caminho da reconstrução, percorrendo-o, a dor irá diminuindo, e não aumentando
como no oposto.
 

Além disso, temos ainda que levar em conta a presença de Deus que, como dissemos, está no seio da parte desmoronada do sistema. Esta presença é uma forca em ação, que envia apelos, auxílios e esclarecimentos. 

Em imensos períodos de tempo, pela convergência de tantos impulsos, é impossível que o ser não compreenda o absurdo de laborar apenas em seu próprio dano, que ninguém, por pior que seja, pode desejar. Existe, afinal, um outro fato. 

A unidade entre os involuídos, na zona corrompida do sistema, quanto mais se desce, tanto mais pelo negativo é obtida, isto é, não mais como amor que unifica, mas como ódio que desagrega, como luta recíproca e cisão, ao invés de como paz e fusão. 

Enquanto o sistema de Deus é centrípeto, o anti-sistema Satanás é centrífugo. Este, pois, em vez de centralizador é auto dispersivo.
 

Tudo isto constitui uma fraqueza que mina cada vez mais o indivíduo, isolando-o e acelera a chegada fatal àquele limite, em que se impõe a inversão de rota. De todo o exposto podemos concluir que, na realidade, todos deverão, mais cedo ou mais tarde, salvar-se. 

Os mais rebeldes sofrerão mais e também alcançarão os braços salvadores de Deus, porque, se um só não chegasse, a obra de Deus teria sido imperfeita e seus fins de Amor seriam frustrados.

Retomemos mais uma vez em exame a teoria do desmoronamento, paradiscuti-la ainda sob o fogo de todas as possíveis objeções, com o objetivo de esclarecer os seus mais recônditos significados. 

Observemo-la dos mais variados pontos de vista e focalizemos todas as suas particularidades. Só assim poderemos chegar à mais clara visão dessa teoria e à sincera convicção da sua veracidade.
 

Se para alguns a teoria da revolta e da queda repugna, experimentemos eliminá-la. Que resta, então? 

O semi-ciclo involutivo necessariamente tem de permanecer, pois que sem ele faltará o indispensável e lógico complemento do inverso semi-ciclo evolutivo que nós vivemos atualmente. 

O mal e a dor são realidades indiscutíveis e características do ser decaído em planos inferiores de vida uma necessidade lógica que a sua causa não possa estar em Deus e, por conseguinte, só pode estar na criatura. 

Sem a teoria do desmoronamento, teria sido Deus quem determinou o semi-ciclo involutivo, isto é, a inversão do espírito na matéria, da liberdade na escravidão, da luz nas trevas, da felicidade na dor etc. 

Como poderia o próprio Deus chegar a esta absurda contradição de querer subverter o sistema que Ele mesmo criou? 

O universo é também um conjunto lógico, no qual não há lugar para absurdos.
 

Do ponto de vista da criatura, não teria sido injusto e maldoso (duas qualidades que Deus não pode ter) condená-la ao sacrifício da ascensão sem que ao menos fosse justificado o seu erro inicial? 

Ás mentalidades que se rebelam à idéia de uma reação da Lei pela queda na dor, em virtude do erro de origem, perguntamos se não se revoltariam mais ainda contra o conceito de um Deus que haja querido uma criação imperfeita e progressiva, impondo ao ser inocente o tremendo esforço de construir a sua felicidade através da dor, por um preço tão duro, quando sabemos que o princípio de Deus, ao criar, é o Amor, isto é, doação por ato de bondade. 

Nós podemos variar de hipóteses, repelir escandalizados uma e outra, mas há fatos positivos, que não se podem discutir ou abolir, tais como o do mal ao lado do bem, da dor ao lado da alegria, o da imperfeição junto à perfeição, ou seja, da existência de um lado desgastado e enfermo, de algo de corrupto, que repugna atribuir-se a Deus, que, de forma alguma, podemos conceber seja incapaz ou mau. 

É absurdo colocar no bem a causa primeira do mal; na felicidade, a da dor; na perfeição de Deus, a imperfeição. A causa deve estar na própria natureza do efeito. 

Dos dois termos com que nos defrontamos, a um dos quais pode caber a responsabilidade, somente a criatura pode errar, jamais o Criador. Poderá desgostar-nos a idéia de sermos culpados, mas outra hipótese não existe para explicarmos as causas.
 

Na equação, cuja incógnita procuramos, muitos termos são tomados como pontos fixos, inamovíveis, tais como a bondade e a sabedoria de Deus, pois que Ele não poderia deixar de querer, e das Suas mãos não poderia ter saído senão uma obra perfeita. 

Do outro lado, a existência da dor e do mal e o contrastante dualismo de princípios opostos, enfim, a atual fase de evolução, que em um sistema de equilíbrio implica a lógica necessidade de uma complementar, inversa e precedente fase involutiva . 

A única teoria que concilia e resolve tudo é a da queda. Se a eliminarmos, acaba--se em um mar de contradições e nada se resolve. É evidente que à incógnita da equação não se pode emprestar outro valor que não seja o seguinte:  

a causa está na revolta e o nosso é um universo desmoronado. 

O leitor que deseja eliminar a teoria da queda, procure outra que igualmente resolva tudo sem dúvidas. Parece-nos lógico que tenhamos preferência pela teoria que tudo resolve, deixando de lado as que não resolvem: teoria que aceitamos por força dos fatos e não por influência de uma escola ou religião.
 

A primeira vez que em nossos escritos começamos a encarar essas questões, foi nos dois capítulos XV e XVI do volume Problemas do Futuro. Ali começamos a tatear o terreno, ouvindo as teorias contrárias, limitando-nos, porém, a fazer mais interrogações do que cuidar de dar-lhes respostas. 

Os problemas foram apenas esboçados e orientados sob um aspecto geral, como germens de conceitos, que seriam posteriormente desenvolvidos no presente livro, ao qual os dois capítulos referidos, do mesmo nome, podem servir de introdução. 

Neles começamos a assentar e agitar o problema na forma psicológica, como muitos o propõem, e dizíamos que o mal parece uma força negativa, que atenta contra Deus, uma imperfeição devida a um erro Seu e que Ele, em dado momento, encontra no sistema, apressando-se a remediá-lo. Há então, um outro Deus que limita o primeiro? Cai o conceito de um Deus absoluto e perfeito. 

E para o homem resta a dor, punição de um Deus vingativo. Essa dor deriva da culpa do primeiro rebelde, que certamente não podia ter consciência completa do bem e do mal, pois se a tivesse tido, não teria, como a revolta, se prejudicado e mergulhado na dor. 

E como pode um inconsciente ser responsável e punível, se ao procurar o próprio bem, erra, sem o saber? 

E em nome de que justiça, Deus, que tudo sabe, que de tudo tinha presciência, mesmo desse erro, pode condenar um ser que errou por ignorância, a pagar com a dor? 

Quando uma criança inexperiente cai, a culpa é dos pais, que, sabendo de antemão, deveriam prever a queda; é dos pais, que têm o dever de educar, antes de punir e, ainda assim, proporcionalmente à experiência adquirida pelo filho. 

Quando este não tem conhecimento, os pais não podem punir. E então, que deveremos pensar de um Deus que, contrariamente aos seus princípios de amor, bondade, lógica, justiça, comporta-se dessa maneira para com a criatura?
 

Assim falávamos naqueles dois capítulos. Esta é uma primeira e elementar forma de plantar a questão. Mas já ali se viam as conclusões, absurdas como eram, visto que se voltavam contra Deus. 

Isto é um assalto á lógica, que o evoluído não pode aceitar. Mas a maioria dos homens é presa de ilusões de ótica psíquica e de perspectiva mental, porque neles, mais do que a lógica e o raciocínio, impera o instinto de auto defesa na luta pela vida. 

Ora, na procura do responsável pelo mal, pela causa da dor, repugna a este tipo biológico admitir e confessar a própria culpa porque sua vida gira, por completo, em derredor à seleção animal do mais forte, que é aquele que sabe vencer, não importando os meios. 

E então, confessar-se culpável é perder; defender-se se é necessidade, ainda que em plano mais elevado semelhante modo de proceder se reduza a absurdo. Assim, para não acusai a si próprio, chega-se até mesmo a acusar a Deus. 

E somente a falta de capacidade de raciocínio que permite imaginar um absurdo tão incrível, como o erro e a culpabilidade de Deus. 

É aqui o caso de perguntar-se se esta atitude mental não constitui uma prova da queda, se ela não deriva da natureza do rebelde e da persistência do originário espírito de revolta. 

Tudo isto revela e confirma a perpetuação de uma corrente de uma força que continua a manifestar-se na sua direção inicial. Imaginar a possibilidade de culpa divina é prosseguir rebelando-se em favor do próprio "eu" contra Deus, o que é culpa de origem, o ponto de partida, que torna e retorna na normal psicologia humana de abuso.
Diz-se também:  


"Sim, o homem errou, mas a culpa é de Deus, Que o criou assim. Ele deveria criar um ser que não poderia errar". 

Como se vê, persistimos sempre na atitude de quem pretende fazer uma escola para Deus, a fim de ensinar-Lhe a operar, sobretudo segundo as nossas próprias conveniências, que se cifram em gozar, sem sofrer. 

Esta é uma concepção antropomórfica para uso e consumo exclusivo do homem. Encontramo-nos aqui nas últimas raízes da dor, nas suas causas mais profundas. 

E o homem, azorragado pela dor, não quer compreendê-la e, para livrar-se dela, sem nada haver compreendido procura arredá-la de si, para atirá-la aos outros, mesmo a Deus, culpando-O. 

Como é raro encontrar o homem que reconhece em si as causas do próprio infortúnio, não as procurando nos demais! 

A razão pela qual a tantos repugna a teoria da queda é que ela humilha e nos induz a reconhecer os nossos erros.
 

À medida que deixamos as causas acessórias e subimos para as mais remotas, o problema se concentra, por inteiro, no momento psicológico da revolta. Como o homem propõe comumente a questão, parece que não podemos fugir ao dilema seguinte:  

ou os espíritos eram sábios e, portanto, não podiam cair, porque sabiam as consequências, ou eram ignorantes e, então, não podiam ser culpados da queda, nem por ela serem responsabilizados, outras palavras: ou Deus criou um espírito que sabia e que, por isso, não podia cair, ou o criou insciente e, então, não o podia punir.
 

Igualmente se diz:  

o mal existe de fato, como força inimiga de Deus. Se ela não foi criada por Deus, Que não é capaz de extingui-la, Ele não é onipotente: se Ele a criou, foi criada uma obra muito imperfeita. 

Logo, Deus não pode ser perfeito. (Na realidade o mal não foi criado por Deus. Que o vencerá).
 

No fundo, tudo se reduz a compreender a psicologia desse erro. Será a nossa psicologia humana capaz de compreender uma psicologia tão distante de nós?
Podemos admiti-lo, já que os homens se incluem entre os espíritos que fizeram a revolta (não sendo deles inocentes descendentes) e pelo fato de que o universo é regido por princípios únicos, repetidos em todos os níveis. Ora, é possível, então, que as posições dos primeiros espíritos não poderiam ter sido senão as expressas do dilema?
Pode-se dizer:  


ou é branco ou preto Mas pode também ser verde, isto é, nem branco, nem preto. 

Assim também as causas podem ter sido bem diversas das acima expostas.
 

Podemos bem entender o conhecimento dos primeiros espíritos como limitado, em face do ilimitado de Deus. De fato, os espíritos, nascidos de Deus como uma divisão orgânica em Seu seio, não podiam possuir o conhecimento do Todo, que só Deus possuía, porque só 

Ele era o Todo, enquanto eles eram apenas momentos da Todo.
 

Eles eram, certamente, perfeitos, mas dentro do limite dado pelo fato de serem uma parte e não Todo. Somente a totalidade que eles formavam, isto é, o conjunto orgânico do Todo, de que eles eram parte no sistema, podia coincidir, também, no conhecimento, com o Todo - Deus. 

É assim que cada um deles não podia ser onisciente, porque a parte pode ter um conhecimento perfeito, nos limites do próprio ser, sem poder alcançar o conhecimento do Todo. 

E óbvio, pois, que para seres perfeitos, mas limitados em face de Deus, Que, como é lógico, devia ser mais do que eles, pudesse existir uma zona que o seu conhecimento não podia atingir. Essa zona do ignoto foi o campo da queda.
 

Essa zona desconhecida não somente faz parte da lógica e da estrutura do sistema, mas também desempenhou um papel específico em relação à liberdade do ser. 

A sua função foi de servi r como meio de prova da amorosa obediência a Deus e da espontânea e livre adesão à ordem da Lei, como era dever da criatura demonstrar para com o seu Criador. 

É lógico que a célula que faz parte de um grande organismo, nele e dele vive como sucedia aos espíritos puros no seio de Deus - é lógico, repetimos, que ela deva aceitar e exercer as leis do organismo, mesmo quando, sendo limitada, não as pode conhecer e compreender. 

E, de fato, as células de nosso organismo humano, mesmo possuindo uma vida autônoma, obedecem à lei do conjunto orgânico, lei superior à delas, de simples células isoladas, e nelas se coordenam em obediência.
 

Obediência necessária, porque sem ela teremos uma anarquia, que faria ruir todo o sistema. A coordenação na ordem é sempre indispensável em qualquer todo orgânico.
 

Este confronto que aqui fazemos não é por acaso, porque realmente a estrutura de nosso corpo físico repete um tipo de modelo originário, qual foi o da primeira criação, cuja estrutura nos revela, do mesmo passo que nos explica por que todos os organismos, justamente por serem derivados do primeiro modelo, são construídos segundo o mesmo esquema e correspondem ao mesmo princípio. 

É ele o princípio universal das unidades coletivas, que já examinamos em A Grande Síntese.
 

Este motivo originário ou tipo construtivo fundamental da criação vai-se repetindo, como um eco, em todos os níveis evolutivos nas menores criações, que são consequência da primeira, à guisa de desintegração atômica em cadeia. 

É assim que as unidades maiores são formadas de agrupamentos de unidades menores e assim se explica o instinto de viver em sociedade, o espírito gregário, quer entre os homens, quer entre os animais, para vencer na luta pela vida. É assim que nas unidades maiores as menores possuem funções menores, em que elas se especializam. 

Foi assim, pois, que para os espíritos puros existiu uma zona situada além do seu conhecimento, zona reservada a Deus, na qual eles não deviam, nem podiam entrar, sem formar um estado de anarquia, que teria atentado contra o próprio sistema. Era essa uma zona em que se devia somente acreditar, obedecendo. 

Ela possuía, desta forma, a função de propiciar como que um exame, um consentimento pedido e feito por Amor, livremente, uma arguição com a qual o Criador interrogava a criatura, para que ela declarasse a sua aceitação: 

sem coação, permutando Amor com Amor. Eis a zona em que podia nascer e nasceu o erro.
 

Alguns espíritos responderam com obediência, aceitando por Amor e por fé, permanecendo fiéis a Deus, em Sua ordem. Outros, todavia, sempre livres, desejaram ultrapassar o limite prefixado, entraram usurpando poderes, no domínio proibido, reservado somente a Deus. 

Eles quiseram usar a liberdade, poderio e sabedoria recebidos de Deus, para dilatar ainda o princípio do “eu sou”, que Deus havia colocado como base dos seres, à Sua imagem e semelhança. 

Eles quiseram ainda crescer, ao invés de coordenar-se em obediência na ordem do sistema: 

pretenderam crescer além do limites de seu ser e natureza, que Deus lhes assinalara. 

E que sucederia, se uma célula do corpo humano quisesse equiparar-se ao nosso “eu” e usurpar os poderes centrais, assumindo a direção de todo o funcionamento orgânico? Certamente, onde existisse desordem o sistema desmoronaria.
 

Não restou como um instinto fundamental da vida o de crescer além dos limites, invadindo, usurpando impondo-se? 

Assim ele se explica. E não sucede sempre a mesma coisa, isto é, que é a Lei o instrumento que exprime o pensamento e a vontade de Deus, que mantém todos os seres dentro dos devidos limites? 

Todos desejariam crescer ao Infinito, como se pretendessem escalar Deus, mas a Lei serve-lhes de freio, repõe-nos em seu limite, disciplina-lhes o desenvolvimento, guia-lhes a ação através dos instintos e mantém-nos no posto que lhes fora designado na estrutura orgânica do sistema. 

E a realidade quotidiana da vida não repete aos nossos olhos as mesmas coisas? 

Nós também dizemos às crianças, ávidas de romper o freio do limite, para não fazer isto ou aquilo, a fim de evitar-lhes dano e frequentemente eles não obedecem e pagam depois com a dor, que é a salutar lição que, quando erramos, nos reconduz à ordem. 

Assim também automaticamente, devem recair nos espaços vitais que lhes cabem todos quantos tentam evadir-se, violando a Lei. Quem espera vencer sem esforço, isto é, fora da Lei, perde-se e paga. O prazer fora da ordem, no vício, acarreta sofrimento e obriga a pagamento.
 

Ora, os espíritos sabiam os seus limites e não deviam ultrapassá-los, sabiam ser parte de um sistema a ser respeitado, com cuja lei deviam harmonizar-se, sabiam era dever não ir além dos limites assinalados, nem invadir a zona reservada a Deus. 

Tudo isso sabiam bem e não foi por ignorância que erraram. O seu ato foi uma revolta consciente, feita, portanto, com plena responsabilidade. Os espíritos podiam ver escrita no pensamento de Deus a norma que lhes pedia - seres sempre livres, mas responsáveis - a aceitassem espontaneamente. 

Eles não a aceitaram. Ouviram apalavra de Deus e não quiseram acreditar. 

E nesse ponto deviam acreditar, pois não conheciam todo o sistema, já que o conhecimento total só cabia a Deus. Eles conheciam o Seu comando, a norma a seguir, mas uma coisa ignoravam, pelo menos por experiência própria, direta: 

a desobediência faria os rebeldes decaírem gerando a dor, que eles ainda desconheciam.
 

Pode-se objetar: 

"Mas Deus deveria ter dado esse conhecimento". 

Há, todavia, uma imprescindível necessidade lógica, que impede tenha o absurdo lugar no sistema. Deus não podia tirar do Seu seio tantos Deuses iguais a Si mesmo, pois como tais seriam senhores de todo o conhecimento. 

Ele não podia de Si mesmo que era o Todo, tirar senão momentos menores que o Todo, dotados, pois de conhecimento menor e parcial, em face do Seu, que só podia ser total. 

Tudo isto está implícito na lógica do sistema e constitui, assim, uma necessidade mesmo para Deus, visto que assim Ele não cai no absurdo e na contradição, respeita a Sua lógica e, por conseguinte, a Si próprio.
 

Não sendo, então, possível, sem violar a ordem do Todo, conceder um conhecimento direto e total, abrangendo também a zona do desconhecido, Deus comunicara aos espíritos um conhecimento indireto, isto é, advertira a respeito do que poderia suceder. Por que os rebeldes não obedeceram? For que não acreditaram na palavra de Deus? 

Eis a culpa. Ademais, um conhecimento completo teria anulado a possibilidade de escolha a prova, a aprovação. a aceitação por ato de obediência, enquanto a lógica do sistema exigia uma aceitação livre, espontânea por obediência e por amor. 

Porque era justamente sobre esses alicerces que se erguia todo o sistema e essas eram as condições necessárias para que se mantivesse. 

O ser era livre e sabia, pois fora advertido. Ele deliberadamente não quis crer e obedecer. A escolha não estava vinculada a nenhuma força, porque Deus quis, acima de tudo, a liberdade do ser, para que ele não fosse um autômato ou escravo. 

Nem era possível que do Seu seio saísse uma criatura que Lhe fosse semelhante, se não fosse livre. Com a revolta, faltaram ao edifício as bases da obediência, do Amor e da ordem e, onde eles faltaram, o edifício desmoronou. 

Então a zona de conhecimento que, sendo diretamente inacessível, fora indiretamente comunicada sob a forma de advertência, para ser aceita por fé, essa zona que os espíritos obedientes conquistaram por crer e obedecer, os espíritos rebeldes foram condenados a conquistar pela dor, através da dura fadiga da reascensão pela evolução. Assim, o erro é reabsorvido na dor, o mal é sanado, o edifício desmoronado é reconstruído.
 

Por que é difícil a compreensão desse ato de revoltar-se continuamente violamos a Lei, embora sabendo que devemos pagar? 

Sabemos e, entretanto, nos iludimos, porque somos vencidos pelo instinto dominador e expansionista do "eu".
 

Como da primeira vez, o mesmo ato repercute e retorna em nossa experiência cotidiana. 

E, por ventura, não comprovamos em nossas vidas que do erro nasce a necessidade de remediá-lo, nasce uma dor pela qual expiamos e, expiando, aprendemos a não mais cometê-lo? 

Não vivemos nós comprimidos nas malhas de uma Lei, onde qualquer violação é erro e que pagamos com dolorosa experiência? 

Mas, apesar de tudo, continuamos a violar, sendo a dor um tributo nosso. 

A Lei é perfeita e quem a cumpre não pode deixar de ser feliz. Se a dor é um fato real, inserido em nossa vida como elemento inseparável e fundamental, isto só pode ser explicado como um erro proporcional e fundamental violação inicial da ordem divina.
 

A dor é um fato inegável e tremendo que atinge a todos, porque cedo ou tarde é inevitável. Sem a queda a dor seria uma condenação imerecida, o belo presente dado por um Deus que cria por Amor! Seria, porém, um presente de ódio, ainda que nos servisse para pagarmos uma futura felicidade. 

A evolução é o necessário sacrifício da subida, se não quisermos agravar a nossa situação, descendo. Somente nesse sacrifício de ascensão está a salvação. 

Sem a queda, porque esse sacrifício?
 

Talvez para pagar a Deus o dom da vida? 

E onde a liberdade e o Amor, quando se é constrangido pela força a pagar tão caro essa vida, que o espírito não pediu a Deus?
 

Mas, que Deus seria esse que não saberia gerar senão na dor, e á criatura não reservando mais do que a dor?
 

Como se vê, se recusamos a teoria da queda, entramos numa insolúvel trama de contradições e absurdos, de que nasce uma triste idéia da divindade. O homem pode bem justificar-se fazendo do erro da criatura um erro de Deus, mas não há quem não veja nisso um absurdo. 

Na vida temos que nos reportar ao erro para explicar a dor, porque ele é essencialmente um estado de desarmonia na ordem da Lei de Deus. Ora, podemos nós admitir um erro em Deus? 

Não, é absurdo. Então, onde poderá ele ter existido, senão na criatura? 

É inútil procurar mais, pois não há escapatória. Que resta, então, do dilema já proposto: 

"Ou os espíritos eram sábios e, por conseguinte, não podiam cair, ou eram ignorantes e, nessas condições, não podiam ser culpáveis"?  

Que resta do outro dilema, pelo qual Deus não podia ser nem onipotente, nem perfeito? Deus que nos salve dos dilemas, que parecem uma tenaz de aço, mas que nada comprimem, porque ao fim se descobre que um dos seus braços era fictício. 

Incumbe-nos mostrar a lógica dos fatos. Os espíritos sabiam que a zona do ignoto era destinada à obediência. Eles sabiam, não eram ignorantes, sendo, por conseguinte, responsáveis e culpados. Sabiam o quanto bastava para obedecer e não quiseram, porque não acreditaram. 

Tudo foi merecido, segundo a divina justiça. Só assim poderia permanecer intacta a liberdade. E o Amor de Deus persistiu, porque, no Seu aspecto imanente, Ele desceu com a criatura, para ajudá-la a subir. 

Só assim se compreende e justifica o sacrifício da evolução. Somente assim a dor nos revela a sua lógica gênese. 

Unicamente desta maneira se confere um valor lógico a todos os termos da equação e eles se podem coordenar em um princípio unitário e num sistema orgânico. 

Caem assim apenas os rebeldes e explica-se a gênese do universo físico, a evolução das dimensões, o espaço curvo em expansão o processo evolutivo. Desta forma se explica tudo:  

de outro modo, nada. 

E o grande desmoronamento é um desastre, mas o sistema é tão perfeito, que pode restabelecer-se. Tudo se reduz a uma lição instrutiva, para que se aprenda a não mais errar. 

Compreende-se, então significado da dor, amarga medicina, que cura o enfermo e elimina o mal, que restaura o ser, no ponto em que se feriu ao errar e o robustece nos sítios em que se revelou fraco e ignaro. 

Não é este o processo corretivo de todo erro nosso em cada reencarnação? 

Nada de vingança punição ou condenação, mas escola para a reconstrução da felicidade!
 

Quisemos acrescentar tudo isto, mesmo repisando alguns conceitos, a fim de que tudo seja exaustivamente controlado pela lógica e claramente demonstrado para Tudo que dissemos tem sua lógica. Logo que as coisas sejam assim, não padece dúvida.

O nosso problema aqui reside em fazer a psicologia moderna compreender que assim é, em termos que ela possa aceitar, dada a sua formação. 

Não há razão que nos leve a crer que o universo seja uma obra ilógica e que o pensamento de Deus, que tudo guia e sem o qual nada se explica, não deva ser um processo lógico. Isto é o que a mais avançada ciência materialista, ela própria admite, e que ressalta também da presente obra. 

Que lógica? - poderemos indagar. 

A lógica de Deus não poderia ser um outro sistema de lógica? 

O fato é que em nosso universo comprovamos um só tipo de lógica, que é também a humano e é este fato que nos torna o universo compreensível. 

Se ele correspondesse a um outro tipo de lógica, não lhe seriam aplicáveis os nossos sistemas matemáticos, aos quais, pelo contrário, ele corresponde perfeitamente. Não existe, pois razão alguma para crer que a lógica do pensamento de Deus deva obedecer a leis diferentes daquelas a que obedece a lógica humana. 

Entre o pensamento do homem, como função primeira do espírito (que vimos não pode ter-se originado senão de Deus - espírito) e o pensamento de Deus deve existir um denominador comum, por mais remoto e profundo que seja, dado pela mesma substância que os constituem. Há ideias axiomáticas, não demonstradas, com as quais instintivamente toda a humanidade concorda. 

São conceitos metafísicos que não constituem resultado da experimentação biológica. O fato é que no fundo do pensamento do homem, quanto mais reto, evoluído e inteligente for ele tanto mais fala o pensamento de Deus com a sua lógica. 

Na verdade, o homem tem de Deus uma representação a sua imagem e semelhança, criando-O, dessa forma. Mas aqui se trata de uma das aproximações sucessivas, as quais só são possíveis quando sob elas existe justamente uma realidade que as torna possíveis. 

E esta realidade está em que o homem é realmente feito à imagem e semelhança de Deus, porque é Seu filho, de origem divina e, ainda que filho degenerado, é sempre filho, semelhante ao Pai.
 

Ora, tudo o que houve na revolta e queda é igualmente provado pelo fato de que, como é também lógico, tudo isso continua a ocorrer todo dia, em nossa própria vida, em uma série de maneiras de agir, verificada por motivos de um dado tipo, que, de outra forma, ficariam sem ter explicação. Por que teria a conduta humana assumido esta direção? 

Por que corresponde ela a tal ordem de princípios conhecidos, poder-se-ia mesmo dizer, a todos, como o bem e o mal, a dor, o progresso, a idéia de Deus etc.? 

De onde surgiu este sistema, que também é lógico para a humanidade inteira? 

Como explicar a gênese e o profundo significado de tudo isto? 

O hábito nos faz esquecer estas questões e, por isso, os simples não as propõem, achando tudo natural apenas porque sempre viram tudo assim. 

Mas isto não basta para satisfazer a quem pensa. Foi somente este conjunto de remotíssimos precedentes que marcou a via e a direção a um movimento ou desenvolvimento particular de fenômenos, que, atualmente, por inércia, continuam a se desenvolver justamente segundo o tipo com que nasceram. 

Somente assim podemos explicar porque continuamos a errar e sofrer cegamente, quando a felicidade está pronta na adesão à Lei. Continuamos, porque somos filhos do erro.
 

Erro e dor são conexos em uma lógica de ferro. A dor é um fato real. Há, pois, uma necessidade absoluta de admitir o seu termo paralelo e complementar - o erro -sem o qual a dor não se explica, e, num universo lógico, cairemos num flagrante e inconcebível absurdo, absurdo de tal ordem, que faz ruir a lógica de todo o sistema, provocando o seu desmoronamento e chegando mesmo a macular de maldade e incoerência o semblante de Deus. 

É tão grande a contradição, que nenhum ser racional poderá introduzi-la nas próprias conclusões. Entretanto se chega a ela, o que quer dizer que os termos em que foi colocado e desenvolvido o problema estão errados. 

A lógica tem suas exigências matemáticas, das quais o nosso pensamento não pode fugir, porque ele se move num universo regido pelas necessidades matemáticas de tal lógica.
 

Compreende-se, todavia, que alguns se rebelem contra essa teoria da queda e do desmoronamento. Para impressioná-los menos, poder-se-iam criar termos novos, mas seria trabalhosa para o leitor uma terminologia nova. Contudo, o conceito não se alterará. 

Rebelam-se com razão, porque essa teoria foi até hoje apresentada apenas como enunciado de revelação, não analisada racional e logicamente, não explicada e demonstrada. Ela permaneceu, assim, como um ato de fé, como uma lenda envolta no mistério. 

O problema, para sua explicação, foi enfrentado com as expostas objeções e dúvidas, que deixam tudo sem solução, qual indagação feita pela metade na fase de interrogação, sem complementar-se jamais na fase de resposta. 

É natural que dessa forma a teoria da queda permaneça como um esboço incompleto, do qual se arredam entediadas as mentalidades racionais. É cabível, então, que a estas repugne aceitar uma teoria que se apresenta vaga, incontrolável e contraditória. Responde-se: 

é mistério. 

Mas o fato é que a mentalidade racional moderna abandona no vazio do incerto tudo o que ainda permanece insolúvel, aceitando e tomando para exame apenas o que é positivamente compreensível, porque é racional. E aqui temos de falar esta linguagem se quisermos despertar a mente moderna. 

É o nebuloso, o desgaste pelo ilógico que faz nascer nela fastígio e rebelião, quando ouve falar em queda dos anjos. É reportando-se aos velhos conceitos tradicionais que muitos ficam chocados. Mas aqui se trata de outra coisa. Nós não repetimos ideias de nenhuma religião ou escola. 

Com o método da intuição. encaramos os fatos, transcendentais, mas sempre fatos. Sem tê-los procurado, concordamos com os enunciados sumários da revelação, o que é uma prova em favor e não contra. 

Já que não é possível dar ao leitor a sensação desta visão, procuramos descrevê-la com os únicos meios que temos á disposição, a lógica, os argumentos. como só se pode fazer para explicar a luz a um cego. 

Acreditamos tê-lo conseguido. Mas se assim não foi, repetimos ainda:  

fatos são fatos.
 
Dizíamos que a Lei reage. Mas aquilo a que chamamos dor que crucia e atribuem a Deus a causa de tudo, culpando-O também dela. Revoltam-se porque acreditam ver em tudo isto uma punição, uma vingança divina. 


Mas a queda não foi vingança, nem punição. Deus é sempre Amor. Deus jamais pune. A punição é infligida pelo ser a si mesmo. Dada a estrutura do sistema, ele, através da rebelião, lacerou as carnes com as próprias mãos. 

Quem compreendeu a estrutura do sistema, não pode falar de vingança. Esta é uma concepção antropomórfica, é como querer explicar o trovão como ira dos deuses. Se perdemos o equilíbrio e quebramos a cabeça não é porque as leis do equilíbrio e a gravidade nos tenham querido punir e vingar-se. 

No campo moral é a mesma coisa. O universo é regido por uma ordem, por uma Lei, e quem a viola não violenta ou altera a intangível ordem divina, mas gera apenas uma desordem em si próprio; não subverte a Lei, mas inverte-se a si mesmo no seio da Lei.
 

É necessário compreender que a criatura é livre, mas dentro de limites, livre para alterar-se a si mesma, mas não a ordem universal. 

A criatura deverá, pois, sofrer as consequências dessa alteração, que só lhe diz respeito e sofrerá pela sua desarmonia que ela desejou, até que, com sacrifício, se haja reintegrado na zona por ela violada, na ordem por ela alterada.
Dizíamos que a Lei reage. 


Mas aquilo a que chamamos reação é uma sua resistência à deformação, uma resistência elástica que se pode comparar à da borracha, que cede, mas resiste e que, quanto mais cede, tanto mais se retesa, para reconduzir tudo ao estado normal anterior. Assim, como a Lei, a norma é inviolável, determinística vontade absoluta de Deus. 

Mas essa Lei é dotada de uma certa elasticidade, no quanto basta para conter um dado âmbito no arbítrio ou latitude de movimento, que representam a liberdade humana, isto é, a possibilidade de escolha e, por conseguinte, de erro, necessários para experimentar e, no caso de erro, para aprender. 

Compreende-se que a perfeição não pode deixar de ser determinística, no sentido de que só o melhor absoluto pode ocorrer. Tal é o sistema incorrupto dos espíritos que não erraram e não caíram. 

Pode, pois, deste ponto de vista, parecer mesmo que o arbítrio humano, além de ser um resíduo da liberdade originária, seja um produto da queda, visto que a escolha significa uma incerteza e uma procura do melhor absoluto, que se perdeu e ainda não foi reconquistado. Os termos do nosso estado de decaídos, escalonam-se nesta ordem de sucessão:  

incerteza, escolha, experiência, erro, dor, prova, escola, conhecimento.  

Estes são os termos do desmoronamento e reconstrução de consciência, termos que não podem existir no estado de perfeição, e que a própria evolução, isto é, nosso retorno a Deus, vai realmente reabsorvendo e eliminando, com a progressiva conquista de consciência. No estado de perfeição dos espíritos que aderiram à Lei, só há uma liberdade possível:  

a da absoluta adesão à Lei, que é a vontade divina, adesão livre e espontânea, querida e consciente. 

Por este motivo, os espíritos rebeldes deveriam ter obedecido e, como desobedeceram, caíram. 

Nessas alturas não podem subsistir os nossos conceitos antropomórficos de liberdade, arbítrio ou capricho. Mas esclareçamos ainda melhor. Quando Deus criou o ser puro espírito, deixou apenas um ponto incompleto na Sua obra, a fim de que ela fosse completada pela livre adesão do ser. 

Este deveria, com a aceitação, harmonizar-se com o sistema e, nele fixando-se em seu posto, dar prova de que sabia fazer bom uso da liberdade e inteligência que Deus lhe dera, compreendendo qual era o seu lugar na ordem da criação. 

Elevar o ser ao grau de colaborador da obra de Deus foi ato de Amor, ato paralelo ao dom da liberdade, pois que a criatura não podia ser um autômato, ainda que perfeito. A prova era um exame lógico e necessário.
Pode-se objetar:  


Deus, que sabia por antecipação que na prova muitos faliriam, devia impedi-la. 

Mas ela não se poderia evitar, a não ser violentando a liberdade do ser, tornando-o um autômato, incapaz de compreender e dirigir-se conscientemente. Significaria alterar todo o sistema, abalando-o pela base. O raciocínio do homem preocupa-se, sobretudo, em como ter podido evitar a dor, que tanto o vergasta, mas não leva em consideração muitos outros elementos necessários.
 

Como podia Deus logicamente, impedir semelhante experiência sem coação? 

A prova consistia exatamente era uma livre adesão por fé e obediência, na reciprocidade por Amor. E se na lógica do sistema não entrava a possibilidade de tal constrição, Deus, Que sabia da queda de muitos espíritos, não os deveria ter criado? 

Mas o sistema é um organismo compacto, de férrea lógica, e nesta não podia caber essa possibilidade, que teria sido um ato de flagrante injustiça. 

Por que tolher aos candidatos à queda e dom máximo da existência e a possibilidade de redimir-se, alcançando a felicidade eterna, ainda que através da dor? 

Que punição e que injustiça não teriam sido essas, pois que seria condenação antecipada de inocentes, antes de haverem cometido qualquer erro! 

É lógico que Deus deixasse a esses espíritos a liberdade e a vida, que constituem sempre ato de bondade e de Amor porque a escolha continuava entre a via curta da felicidade pela obediência á ordem da Lei e a via longa da redenção pela dor, após o erro da revolta.
 

Deus permitiu o erro justamente porque sabia. E sabia também que esse não era um mal irreparável, era apenas uma via mais longa para alcançar a felicidade eterna Vimos que o mal, ou se converte em bem, ou esta destinado, pela férrea lógica do si tema, à autodestruição. 

Deus sabia que a Sua criatura qualquer que fosse a via que tivesse escolhido para percorrer alcançaria a felicidade. Eis que o amor, a bondade3 a justiça, a lógica de Deus ressaltam cada vez mais evidentes, em cada caso.
 

Fala-se de vingança por cegueira, e não se vê que o Amor de Deus foi tanto que, como Filho, desceu ao nosso mundo para sofrer conosco e redimir-nos, ensinando-nos a subir! 

Foi tamanho esse Amor, que Ele quis descer dos céus da transcendência à imanência, para permanecer em nosso contingente. Assim o médico vela e ajuda o enfermo de perto, até que ele se tenha restabelecido. 

Que mais se poderia pedir a este Deus que muitos pretendem acusar de injustas punições? 

Ao contrário, quanta sabedoria, quanto Amor, quanta bondade! Só mesmo uma grande ignorância pode concluir de maneira diversa.
 

É o antropomorfismo que leva o homem a aplicar a Deus os princípios do seu plano biológico. Repitamos:  

Deus jamais pune. 

O que nos parece punição não resulta de uma atividade positiva de Deus contra a criatura - conceito absurdo -, mas é a automática consequência da ausência de Deus, Que a criatura repeliu. 

A causa determinante é a recusa voluntária da criatura. Deus não inflige punições, mas quando a criatura O nega e repele, Ele respeita a verdade que lhe deu e, assim, pela própria vontade, a criatura se afasta de Deus, como se Ele se tivesse retraído. 

Ora, uma vez que Deus é vida, a maior punição é esse afastamento, porque significa privação de vida. E, com a revolta, a criatura se privou da própria vida, que é dada pelo espírito, tornando-se matéria, mas com possibilidade de ressuscitar da sua sepultura.
 

Tudo isto demonstra como se fosse lógica e fatal a queda após a revolta, porque esta significava um afastamento de Deus, ou seja, da vida; significava, portanto, um suicídio, a morte, ainda que a bondade de Deus lhe deixasse a possibilidade de ressurgir para a vida, corrigindo o erro com a dor. 

Tudo isto poderá agora também permitir-nos melhor compreender aquilo a que precedentemente lá nos referimos, no presente capítulo, com respeito à anulação dos espíritos rebeldes, que insistem em permanecer na rebeldia. 

O espírito que recalcitra na revolta é anulado (ainda que o seja somente como individualização e não como substância, porque esta, sendo de Deus, é indestrutível), em virtude de que todo o afastamento de Deus significa morte, porque Deus é vida. 

Negar Deus é o mesmo que negar a existência, porque só Deus é, e fora de Deus nada mais pode ser. Deus é o Todo, e sair do Todo é cair no nada. Fora de Deus, que é o Todo, não pode existir senão o nada. 

É a natureza de Deus e a própria estrutura do sistema que, automaticamente, sem nenhum ato ou intervenção de Deus, implicam a morte de quem se afasta Dele. Somente em Deus se pude existir, no Seu seio e na Sua Lei, e a Ele retornando, se a criatura se afastou.
 

Quem não estiver com Deus e quem Dele se afastou e não mais retorna a Ele, perde a existência. 

A essência da queda não é, portanto, um ato de punição, mas o afastamento de Deus, desejado pela criatura, que tem fatal necessidade de subir novamente a Ele, se quiser reencontrar a vida. 

Como se poderá manter o edifício criado por Deus, sem Deus, seu princípio animador? 

Não será lógico o desmoronamento para os seres que se afastaram desse princípio? 

A revolta contra Deus significava revolta contra a própria vida do ser, contra a sua própria existência. Que poderia resultar desse comportamento, senão a morte, um não-ser, como é para a consciência, qualidade do espírito, a inconsciência - qualidade da matéria? 

Assim a queda foi um desmoronamento de dimensões, em planos de vida inferiores, involuídos, nos quais todos os dons de Deus se contraíram em um estado potencial, de latência, do qual só o sacrifício de ascensão do ser poderá retirá-los, despertando-os para a atualidade. 

Ora, o ser, para curar-se da desobediência, deve compensar a ordem com equivalente obediência à Lei, para que o equilíbrio seja restabelecido. 

Não se pode restabelecer a harmonia de outra forma em um tal sistema. O homem deve, assim, provar o aspecto duro da Lei, mas esta permanece sempre lógica, boa e justa. 

No fundo da descida está o inferno; no ápice da subida, o paraíso. De fato, quanto mais se desce, mais aumenta o egoísmo separatista, a desarmonia, a luta e a agressividade entre os seres, sempre dispostos a entredevorarem-se. Quanto mais se sobe, tanto mais a vida se harmoniza em paz e amor.
 

Eis, pois, tudo esclarecido até às origens. Assim se explicam as razões e as causas deste processo evolutivo, do qual em A Grande Síntese só se fez um exame objetivo, uma comprovação do fato. A muitos poderá desagradar este destino de tão laboriosa ascensão pela conquista da felicidade. 

Mas não está tudo agora lógico? 

A nossa miséria atual não é um defeito de criação, de uma culpa de Deus. 

É uma mácula, uma chaga nossa, que Deus está curando. A dor permanece, mas com uma interpretação tão otimista, que adquire um grande significado positivo e um poder construtivo em nossa vida. 

E a criação, que verificamos ser contínua, é, assim, na sua essência, uma obra de restabelecimento contínuo, com a qual Deus auxilia o homem a reconstruir o edifício desmoronado. Tudo assim se explica em perfeita lógica de bondade. 

Se nessa lógica do sistema colocarmos os conceitos fora do respectivo lugar, é natural que resultem quadros horríveis, monstruosos, como em um mosaico em que as diferentes pedrinhas fossem assentadas ao acaso. Mas respeitemos a lógica (o sistema está saturado dela), e entre nós aparecerá a maravilhosa beleza e perfeição do plano divino.
 

Que maior maravilha do que o surgimento do aspecto imanência da Divindade, que assim permanece presente no universo desmoronado, nele descendo para animá-lo, curá-lo e salvá-lo? 

Que perfeição no sistema, fazendo com que um erro - a revolta -, ao invés de constituir um desastre irreparável, se transmude em um processo de restabelecimento semelhante ao que o poder curativo da natureza (imanência de Deus) exerce num organismo enfermo! Não. Não houve nenhum defeito de origem.
 

Ao contrário, o sistema era tão perfeito na sua estrutura orgânica, que a revolta não lhe afetou a perfeição, permitindo que todos se salvem. Finalmente, desaparecerá qualquer traço de erro com suas consequências, sendo o mal e a dor eliminados do sistema. 

A cruz que Cristo tomou sobre os ombros inocentes era o efeito do desmoronamento. Ele a carregou para que todos, com Ele, reabsorvessem na dor a consequência do erro. Que maior Amor poderia revelar pela sua criatura um Deus Que após lhe haver dado a vida, desce a sofrer com ela para devolver-lha, quando ela já a havia perdido?
 

É bom, é lógico, é satisfatório reconhecer no Amor o centro do sistema. É este princípio de Amor o princípio de coesão que mantém una a Divindade, ainda que, para criar, ela se cindisse no seu íntimo (dizemos intimo, porque nada se pode acrescentar ao Todo e Deus é o Todo). 

É este princípio de Amor que também mantém unido o edifício desmoronado e o reconduz à salvação, mesmo que seja através da dor.
 

Quanto mais se desce nos planos da queda, tanto mais áspera é a dor e tanto mais amarga de ódio. Quanto mais se sobe na evolução3 tanto mais dulcificada pelo Amor ela será. 

Assim, a dor de Cristo na redenção está baseada no Amor, enquanto a dor de Satanás não tem esperança de ascensão e é baseada no ódio. Amor invencível, que resiste à revolta da criatura. Amor que conserva, mesmo no universo decaído, o divino princípio positivo da reconstrução! 

Amor que luta contra o satânico princípio negativo da destruição, e o vence. Amor que permanece, ainda que a revolta tenha sido pela criatura com a sua negação! Amor que continua a cimentar as partes do edifício desmoronado fazendo dele entretanto, um sistema orgânico, como é o nosso universo!
 

A criatura rebelde pretendeu atentar contra o sistema para lhe alterar os planos hierárquicos, e ele, baseado em uma férrea lógica de Amor, resistiu e a está salvando. E a pena para a revolta e uma lição de Amor, porque, se é dor, também é impulso e pressão para a reconquista da felicidade. 

O ser deverá sofrer até aprender a grande lição de Amor, até saber como deveria ter, no início, espontaneamente retribuído a Deus o Amor que de Deus recebeu. 

Sem o Amor o sistema não se mantém, como efetivamente se verificou no desmoronamento, onde ele faltou. Sem o Amor, a criação teria sido uma cisão de Deus em partes, e o Todo não poderia conservar-se, em Deus, um organismo uno. 

Daqui a necessidade absoluta da existência no sistema da livre correspondência de Amor, que era o conteúdo da prova em que os espíritos rebeldes falharam. 

Tudo isto, repetimos, porque sem Amor o Sistema não se mantém. Eis o que está em seu centro e lhe constitui a essência.
 

Temos observado o problema sob todos os pontos de vista e debaixo do fogo de todas as objeções. Agora o desígnio da obra divina está claro. 

Dele, como a nossa mente exige, foi eliminado tudo que é negativo e absurdo, como erro, imperfeição, desordem, injustiça, maldade, que não podem ser atributos de Deus. 

Não restou senão o que é positivo e lógico, como perfeição, ordem, justiça, bondade, Amor. Um sentido instintivo nos diz que assim é, que não pode deixar de ser. Somente dessa forma o nosso espírito se sente satisfeito, saciado e receptivo. 

Ele exige que a idéia de Deus se salve e se conserve O resto não é explicação. É blasfêmia! O princípio do Amor está no vértice da criação, foi o seu motor, é a força que rege. Deste vértice, o Amor tudo anima e sustém. 

Se em Deus existe o aspecto justiça, sabedoria, bondade, lógica, ordem, poder etc., a ultima síntese do pensamento e vontade de Deus é dada pelo Amor. 

Poderíamos, após o exposto, considerar exaurida a argumentação e nada mais acrescentar. Queremos, todavia, ainda esclarecer melhor qualquer dúvida, especialmente no que se refere à teoria:  

em que muitos creem, pela qual se admite, no invés da queda dos anjos uma criação progressiva, evolucionista, no sentido de um universo criado imperfeito e a caminho de um aperfeiçoamento contínuo.
 

Após ter submetido semelhante teoria a uma séria análise, despido de preconceitos, fomos obrigados a recusá-la, porque ela nos levaria a cair numa série de absurdos, que nos permitimos aqui sujeitar a exame.
 

Deus, Que, sendo perfeito, não pode deixar de criar senão perfeitamente teria feito uma criação imperfeita. Deus Que é Espírito e ordem teria tirado diretamente da Sua essência a matéria e o caos, que são o ponto de partida da evolução. 

Deus, Que é tudo, fora de Quem nada pode existir e que representa toda a existência, faz derivar tudo do nada, (isto é, da Sua negação, porque Deus é o ser), e a Sua grande obra criadora não passa de uma inversão, restabelecimento ou reconstrução do Seu contrário. Isto presume um antagonismo, uma cisão e luta de dois princípios opostos na própria essência de Deus, independentemente e também anteriormente à criação. 

O ponto de partida desta estaria não em Deus, mas nos antípodas de Deus; não no absoluto, no imóvel, no espírito, na perfeição - qualidades de Deus -, mas no relativo, no transformismo, na matéria, na imperfeição, que são o oposto de Deus. 

É evidente que tudo isto não pode ser obra de Deus, pois Ele não pode errar, e sim obra de uma criatura, que podia e livremente quis errar. Tudo isto não podia nascer diretamente de Deus, mas somente em um segundo tempo, posterior à primeira criação, por obra de um outro “eu” e em consequência de uma outra causa. 

E como tenha ocorrido, procuramos logicamente demonstrar neste volume, de acordo com uma outra teoria, a da queda dos anjos, a única para salvar-nos de tal cadeia de absurdos. Prossigamos no exame. Segundo a teoria da queda, Deus desce ao nosso
universo por Amor, para salvá-lo. 


De acordo com a teoria da criação progressiva, Deus, Que é perfeito, se põe, Ele, Que é tudo através de Suas criaturas, em um estado de desmoronamento do ser, é, um estado em que a consciência, primeira qualidade de Deus, se anula na matéria. 

O ponto de partida da criação progressiva seria um estado em que Deus se autodestruiu nas Suas qualidades primaciais estabelecendo a própria negação na inconsciência, na dor e no mal, para iniciar num penoso sacrifício de ascensão, cotidianamente imposto à criatura, certamente inocente de tudo isto. 

Os elementos fundamentais do sistema, isto é, Amor, bondade divina, liberdade da criatura, falhariam  completamente desta maneira. E não se poderia imaginar mais absurda violação da justiça no seio de Deus, Que não pode deixar de ser essencialmente justo.
 

O mal e a dor teriam sido, pois, obra direta de um Deus e, por conseguinte, de Sua natureza malvada. Deste modo a obra da criação tornar-se-ia uma maldição para a criatura,  uma condenação de que o ser inocente deve redimir-se à custa de um ilimitado  tormento. E assim dever-se-ia dizer, não como escreveu S. João: 

— “No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus” (....)

mas sim:  

--- “No princípio era o mal e a dor, e eles estavam com Deus. ” 

A grande obra divina teria sido a criação de um inferno, e à criatura só restaria o penoso encargo de redimir-se dele com a própria dor. O tudo sem liberdade de escolha, sem culpa alguma, como uma fatalidade sem apelo. 

Para condenar a criatura, Deus não lhe teria pedido permissão, nem lhe teria dado a faculdade de escolher. 

Desta maneira, ela já se encontra no inferno ao nascer, sem saber por que, automaticamente. Se quiser e souber subir através de seu sacrifício, para lhe fugir, conseguí-lo-á; de outra forma, nele permanecerá para sempre.
 

Mas eis que, um dia, desperto de tão horrível obra, exclusivamente Sua, Deus se  arrepende e, para remediar o mal, verificando que o homem por si não consegue subir, envia Cristo, o Filho dileto, também Ele inocente, para ser sacrificado por um Deus injusto, para pagar um débito que ninguém contraiu, nem Cristo nem a criatura, ambos inocentes. 

Como se pode então negar razão ao homem que blasfema contra semelhante Deus, quando Ele lhe é apresentado revestido de tais absurdos? 

Se o mal e a dor foram criações diretas de Deus, como atirar a culpa sobre a criatura? 

E que se pode pretender de bom e que pode exigir o Evangelho de um ser criado em condições tão más, quando a vida é uma condenação e a criação um delito?
 

Não! Se verificamos que efetivamente a criatura sofre e algo paga, através de sua dor, por um senso de lógica e de justiça, devemos admitir que ela deve pagar algo que lhe compete, um erro ou uma culpa que seria absurdo atribuir à perfeição de Deus. 

Olhamos o efeito, e a sua natureza nos indica a causa que o produziu. 

Se tivesse sido o Criador a causa, Ele e ninguém mais deveria expiar na dor. E como pode o Onisciente ter necessidade da escola da dor para aprender?
 

Como se vê, quanto mais se medita na teoria da criação progressiva, mais se torna esmagador o acúmulo dos absurdos. 

Se a alguém, por preconceito de grupo, pode desagradar a teoria da queda dos anjos, apenas porque ela é admitida pela teologia católica, incumbe-nos afirmar que nos preocupamos somente em conhecer a verdade e que a aceitamos onde quer que ela se encontre, desde que convença e satisfaça,  independentemente de qualquer preconceito de religião, escola filosófica ou grupo humano. 

É oportuno indagar agora como poderia ter surgido essa teoria da criação progressiva, evolucionista, de um universo criado imperfeito e em via de contínuo aperfeiçoamento.
 

Essa teoria nasceu em virtude de corresponder à realidade do que se observa, fornecendo-nos uma primeira explicação, embora superficial, do fato indiscutível da evolução, que realmente leva o universo de um estado de imperfeição, caos, matéria, ao de perfeição, ordem, espírito. O fato existe. O erro está em sua interpretação.
 

Ninguém ousará discutir o fato, porque é uma realidade. Se não quisermos porém, cair nos absurdos mencionados, impõe-se explicá-la não como consequência da obra de Deus, mas como conseqüência do desmoronamento do sistema, decorrente da queda por obra da criatura. 

O fenômeno da evolução não pode ser um absurdo e incompreensível caminho em uma só direção, um semi-ciclo desprovido do seu semi-ciclo inverso e complementar sem o qual não se forma o ciclo completo e o fenômeno não se verifica e não se explica no equilíbrio divino. 

O fenômeno da evolução existe e é aceito, mas se pode compreendê-lo e admiti-lo como contraparte de um inverso processo involutivo causado pela criatura. Esta necessariamente devia ser livre, mas como não podia ser igual a Deus, era passível de erro e, por isso, embora advertida do perigo, por desobediência quis errar. 

É certo também que a criação é progressiva, mas não no sentido de uma nova criação, porque tudo já estava e está em Deus sempre, e a Deus nada se pode acrescentar, como Nele nada criar ou destruir. 

A criação é verdadeiramente progressiva, mas no sentido de reconstrução de um edifício desmoronado, do qual se estão juntando as partes desagregadas e reedificando os planos afundados.
 

Em nosso universo, é absurdo um fenômeno unilateral desequilibrado, por falta do seu complemento compensador; um fenômeno que avance em uma só direção, isto é, apenas  um semi-ciclo, um semi-circuito, significando um semi-fenômeno

Todo fenômeno tem que volver sobre si mesmo para completar-se, permanecendo sempre a mesma substância, ainda que mude a forma, porque ele é apenas um estado de vibração interior com finalidade de elaboração evolutiva, e não um deslocamento real.
 

A mobilidade é, assim, só aparente, situada no relativo de um vaivém cíclico, enquanto no absoluto tudo permanece imóvel. 

Sabemos que o transformismo é filho da queda pois em Deus não há mutação nem evolução, mas tudo simplesmente é. 

Tudo, pois, no universo, deve completar-se no seu semi-ciclo e com ele volver ao ponto de partida, ainda que com pequeno deslocamento, que constitui a evolução. Todos os fenômenos caminham em duas fases inversas e complementares, sem que, no transformismo, não pode haver fenômeno. 

Efetivamente, este se pode definir como um momento particular do transformismo evolutivo. Por tal razão, o fenômeno não pode existir no absoluto.
 

A própria teoria da reencarnação, simplificando contínuas inversões entre vida e morte, entre erros e expiações, provamos o princípio fundamental do ciclo completo, composto de dois semi-ciclos:  

queda e ressurreição. 

Há absoluta incompatibilidade entre a teoria da criação progressiva e a teoria da reencarnação.
 

Uma exclui a outra. Se admitimos a reencarnação, temos que abandonar o conceito de criação unicamente progressiva e aceitar a teoria da queda. 

Se aceitamos a criação apenas progressiva, é necessário abandonar o conceito de reencarnação. Isto porque, segundo o princípio de criação progressiva, que se desenvolve apenas no sentido evolucionista, sem o precedente semi-ciclo involucionista, o criado deverá mover-se em uma única direção, devendo no sistema ser desconhecido, jamais aparecendo, o princípio do ciclo. 

Se este princípio surge em um caso particular, num universo que sabemos construído num tipo único de sistema, depois repetido em todos os níveis e dimensões, isto significa que o referido princípio do ciclo está também no caso geral do tipo-base do sistema. Se o fragmento que recolhemos reflete, verificamos claramente que a unidade de que esse fragmento deriva era um espelho.
 

Concluindo, procuramos neste capítulo prever todas as objeções possíveis. Mas, na realidade, elas podem ser tantas quantas são as formas mentais humanas, o que é um número praticamente infinito. 

Para as que não puderam aqui ser imaginadas asseguramos ao leitor que as coisas ocorrem como realmente estão expostas neste livro e que, sobre estas bases, qualquer dificuldade pode ser logicamente resolvida. 

O leitor inteligente, que se apossou da chave do sistema, poderá fazê-lo racionalmente, desde que pense sem preconceitos e sem pontos fixos inamovíveis. 

Entretanto, já que uma das primeiras condições para a aceitação de uma teoria é a sua clareza de exposição e facilidade de compreensão, procuramos aqui traduzir, na forma mais transparente e evidente possível, o pensamento recebido por intuição que provindo de outros planos dificilmente se traduz em palavras humanas.