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07/10/2015


97. 

O ESTADO E SUA EVOLUÇÃO


 


 


Assim a Lei reconstrói na história os equilíbrios violados e guia os acontecimentos acima da vontade dos dirigentes e dirigidos. 









A história caminha sem jamais parar. Cada século produz, elabora, assimila um conceito e o entrega realizado — patrimônio hereditário que se acumula — ao século seguinte, que se preparará para novas criações.
 
Cada época tem sua função criativa; os outros aspectos da vida, entretanto, calam-se e esperam. 

Dessa forma, a Idade Média, entre violências e paixões, terrores satânicos e visões místicas, aguardava a construção da sua consciência do bem e do mal: 

um tormento de alma, para reencontrar a voz de Deus; um esforço, acompanhado do tormento de uma dor coletiva opressora, a fim de realizar o sonho da libertação individual. 

Titânica ebulição de almas, a Idade Média, no campo da arte, da política, da ciência, lançava a semente das maiores construções espirituais. Vosso século esqueceu o espírito, a fim de criar ciência, mecânica e velocidade, que fundamentaram vossa psicologia. 

Depressa essas coisas estarão conquistadas e, mesmo utilizando-as, a consciência dirigir-se-á, por meios mais poderosos, para construções mais elevadas de espírito em todos os campos. As leis da vida, adormecidas por milênios num ritmo uniforme, sofreram uma sacudidela e hoje estão despertas para lançar-vos à civilização do terceiro milênio.
 
Como a Revolução Francesa, momento crítico e longamente preparado nos séculos, concretizou à luz da existência histórica a subida da burguesia produtiva, assim a futura revolução maior da humanidade, filha de uma maturação substancial biológica, trará à luz a subida política da intelectualidade consciente. 

Não compreendo como intelectualidade aquela miscelânea mental entulhada, cultura moderna, fato externo que não proporciona virtude à personalidade, mas entendo-a como uma maturação de raça construtora de instintos mais altos, que tornem o homem um ser escolhido pela seleção, para função social do mando. 

... cultura moderna ...


A esta função de governo estará agregada, por qualidades inconfundíveis de raça e não por superposição de cultura e de títulos, uma elite insubstituível, tal como na natureza nenhuma célula de tecido muscular poderá substituir a célula à qual foram confiadas funções nervosas cerebrais.
 
A base biológica da divisão do trabalho por especialização de capacidade é a única que pode justificar o conceito do futuro estado orgânico, diferenciado nas unidades compactas em sua fusão, expressão viva do organismo biológico coletivo. 

Estado, em sentido colaboracionista, em que, além das funções econômicas e produtivas, acrescentam-se todas as funções sociais e éticas. 

A esta substância biológica temos sempre que nos referir todas as vezes que quisermos compreender o fenômeno político; não construções ideológicas, mas a realidade da vida em suas mais profundas raízes, que se enxertam na fenomenologia universal, seu fundamento indestrutível.
 
Se a Idade Média, em suas condições sociais involuídas, só podia oferecer ao homem um sonho de libertação individual pelos caminhos da renúncia mística, hoje nasceu o Estado. A sociedade constituiu-se de forma orgânica, e no seu seio o indivíduo pode atingir toda sua realização. 

Se a Idade Média atendeu às construções prevalentemente individuais, retoma-se, hoje, o ciclo das construções e conquistas coletivas. 

Não se concebe mais o indivíduo isolado, mesmo se for santo, numa fuga mística da companhia humana, mas o indivíduo fundido nela em colaboração fecunda.
 
Hoje, podemos definir mais exatamente o poder central, como central psíquica e volitiva de uma nação, e estender o conceito de Estado a todo o organismo nacional.
 
Em sua evolução, o conceito de Estado nasceu do poder monárquico absoluto, tipo Luís XIV. 




Na longa luta feudal, uma família vencera, primeiro submetendo as outras, depois assimilando-as. Realizado o esforço da concentração do poder, antes espalhado sem coesão em mil ramificações, dando o surgimento de um órgão central numa vasta coletividade, este não podia, por sucessão natural de impulsos, deixar de elaborar logo o conceito de Estado na evolução das Monarquias que, nessa elaboração, esgotavam sua função histórica. 

O Estado tornou-se, por seu mérito, sempre mais orgânico, progressivo em profundidade, não para limitar o indivíduo, mas para valorizá-lo e elevar-lhe a consciência; tornou-se cada vez mais rico de funções e de deveres, até a hodierna concepção de Estado.
 
Hoje, o Estado não é mais apenas um poder central superposto a um povo. Esse era o Estado embrionário, filho da monarquia. Não mais se admitem essas superposições. 


O Grande Ditador (1940), de Charles Chaplin

Portanto, o Estado não é mais apenas um poder central dominador, mas é o cérebro de seu povo e só pode ser expressão de uma consciência nacional, de uma unidade de espíritos, baseada numa unidade ética. 

Se as unidades primordiais da matéria já atingiram tão perfeita e maravilhosa organização ao se aglomerarem nas unidades coletivas dos cristais (orientação molecular, gênese e acréscimo proveniente de um germe cristalino, reparação das zonas mutiladas e reconstrução exata da forma individual); se tanto psiquismo já explode na matéria, fundindo as moléculas em unidades orgânicas, imaginai a perfeição que terá de atingir o mesmo princípio, que maravilhosa complexidade de formas o mesmo psiquismo terá de produzir, elevado depois de tão longo caminho evolutivo à consciência social, ao expandir finalmente seu impulso na criação das superiores unidades coletivas humanas. 

Por esse caminho o Estado prosseguirá em sua evolução, absorvendo e organizando, não apenas representando um povo inteiro, num progressivo processo de descentralização e concentração, de contatos cada vez mais intensos entre periferia e centro. 

Com isso, a autoridade não se pulveriza, mas o povo funde-se nela, numa correnteza de fluxos e refluxos, que o torna cada vez mais um organismo a funcionar, consciente e compacto.
 
Nossa concepção biológica dos fenômenos sociais e nossa concepção evolucionista do Estado nos levaram, naturalmente, a esta visão atual de um Estado cada vez mais unitário e, assim, fica logicamente colocado no quadro da fenomenologia universal, no caminho da evolução coletiva para o ápice da fase $ \alpha $. Solicitei à realidade biológica que me desse as linhas do ideal social. 

Essa realidade vos reafirma, em toda a parte e sempre, que o princípio e a vontade da Lei são: 

trabalho-função e divisão, especialização e reorganização de capacidades e de atividades. 

Observai que fundamentos universais foram dados aqui a esse conceito de Estado. Nenhum sistema político jamais soube justificar-se mediante uma filosofia científica que retomasse à gênese da matéria, da energia e da vida. 

Conclusões espontâneas, encarceradas numa jaula de racionalidade, necessárias num organismo de conceitos e de fatos, tal como são o universo e esta Síntese que o descreve.
 
Hoje, o Estado nasceu. Não podiam denominar-se assim os velhos organismos políticos, baseados na superposição de classes até o absurdo, inadmissível, de um domínio estrangeiro. Hoje, um povo não é um domínio, mas um organismo cuja alma é o Estado. 

Esta é a etapa hodierna das unificações dos indivíduos em coletividades, que progridem da família à classe, à nação, à humanidade. Para chegar-se a saber viver como unidades coletivas superiores, é necessário passar pelas unificações componentes menores, vivendo-as através de uma maturação gradativa e consciente. 

Portanto, são absurdos os internacionalismos abstratos, quando o mundo ainda trabalha para encontrar suas unidades étnicas menores e sua criação atual, antes ignorada. 

A formação progride por continuidade, já que uma unidade coletiva não é mero agregado regido por pressões de leis; para resistir ao choque do tempo, tem de ser um organismo regido por uma consciência coletiva, fusão de almas, e só pode operar após longa maturação; uma unidade só se mantém na medida em que se tenha formado e enquanto a ela corresponda outra íntima unidade psíquica que a mantenha coesa.
 
Uma nação é simplesmente a veste externa de um psiquismo coletivo, a forma biológica desta unidade espiritual superior.
 
Hoje, o Estado só pode ser povo, povo só pode existir organizado em Estado. A progressão das unidades e consciências dirigentes continuará a dilatar-se na evolução, até uma unidade e consciência que abarquem toda a humanidade, e daí a uma unidade e consciência cósmica que compreenda todo o universo. 

A luta é esforço de transição que cessa ao atingir-se a meta, a unificação mais elevada. Esta é a tendência constante, o significado das grandes tentativas históricas da formação dos impérios. Política, científica e espiritualmente, o ser busca a unidade.
 



Também o campo político é campo de verdades relativas e progressivas; o conceito de Estado está em contínuo devenir, tanto quanto um povo é uma unidade em contínua evolução. 

Cada geração vive um momento do gradativo desenvolvimento da verdade política do próprio povo, como por momentos sucessivos vive sua verdade artística, científica, ética e religiosa. Só hoje se pode falar em Estado. Para chegar aí, a jornada foi longa. Trata-se de uma maturação biológica, longamente elaborada, mesmo que tenha explodido em revoluções. 

A unidade coletiva expressou-se desde as origens em seu poder central, pelo método da seleção biológica. Assim, criado esse centro, progressivamente disciplinou-lhe os poderes. 

Primeiramente, a coação, ou seja, o arbítrio de um vencedor; depois a convenção, ou seja, o arbítrio das maiorias; finalmente, hoje, a função coletiva, isto é, a justiça. Essas são as etapas evolutivas do princípio da atribuição de poderes.

 


Mais minunciosamente, temos, no princípio, um poder absoluto subdividido, como no feudalismo; depois, um poder absoluto, concentrado nas mãos do mais forte (monarquia), vencedor de uma classe inteira, mais tarde domesticada e convertida nas cortes (classe aristocrática). 

O centro ainda se ressentia das origens familiares, o cabeça era dominador de consanguíneos e o poder hereditário. Isto demonstra que o poder nasceu na família, nas mãos do chefe, e a família é o instituto basilar da sociedade humana. 

Nesta fase, o poder é conquista, a função dirigente atravessa a fase de luta, própria das formações, correspondente à da força, ainda não elevada a direito e justiça. Estamos na perfeição da monarquia absoluta, do Roi Soleil, que dizia: 

“L’État c’est moi” (“Eu sou o Estado”). 





Meio século de abusos com Luís XV e, com Luís XVI, o sistema desaba. Como todos os fenômenos, também o político procede por amadurecimento de ciclos. 

A revolução reage com um poder absoluto confiado às maiorias. O rei era o povo. Foi chamado de poder representativo, democrático; passava do máximo de concentração ao máximo de descentralização.
 
Assim caminhava a evolução do mando por excessos e reações corretivas extremas, com tendência constante ao abuso, porque o homem ainda não evoluíra, a causa não se aperfeiçoara; avançava por uma série de enérgicos contragolpes, porque a lei de equilíbrio impunha a necessidade de uma correção contínua. 

Num estado de inconsciência que gerava abuso e excesso, a evolução não podia caminhar senão oscilando entre impulsos e contra-impulsos. O conceito de soberania popular nascia como reação ao abuso da soberania de um só. Mas, substancialmente, ao arbítrio de um só, sucedeu o arbítrio das multidões.
 
Acredita-se sempre somente nas mudanças de sistemas e não se vê que a substância que decide é a maturação do homem. A revolução francesa iniciou o povo na difícil arte do mando, mas desde os primeiros momentos o povo demonstrou-se incompetente e inconsciente, excedendo-se nos piores abusos. 



O poder requer a mais alta maturidade de consciência; é uma grande força, perigosa nas mãos de uma criança. Mas desde esse momento, o povo começou a estudar a nova arte e a resolver o novo problema. 

Assim, abuso e reação amortizar-se-ão gradativamente e será conquistada a substância, conteúdo de todas essas mudanças:  

a consciência coletiva, a formação do Eu na unidade social. 

Só nesse sentido, isto é, o de ser o seu exercício um instrumento de formação de consciência, o poder representativo não podia ser um absurdo em sua alvorada, porque presume uma consciência coletiva que então estava justamente a formar-se, efeito do trabalho do Estado, não causa de sua construção. Mas, como vimos, função e órgão apoiam-se, criando-se reciprocamente. 

Aconteceu, então, que, pelo mesmo princípio de correção do abuso, pelo qual o sistema representativo tinha corrigido o poder monárquico absoluto, um novo poder centralizador corrigiu os abusos do poder representativo. 

A infertilidade da descentralização levou novamente à centralização. Assim, oligarquias e democracias se alternam e se compensam mutuamente.
 
Mas essa oscilação entre os dois extremos não tem, apenas, a função de restabelecer o equilíbrio da Lei; é a técnica evolutiva, na qual o homem é trabalhado como material político constitutivo. Esse alternar-se de sistemas não é simples compensação de contrários, mas um escorar-se de impulsos e contra-impulsos; é um jogo de forças, de cujo contraste surge um progresso íntimo. A eliminação do arbítrio é obtido não só por controles externos, mas sobretudo por amadurecimento de consciências. 

Como pode ser mais moderada a oligarquia, depois de um século de experiência democrática! Como aprendeu a executar civilizadamente as revoluções, a inclinar-se para o povo, a reencontrar, em sua elevação, a própria função justificadora! 

Com quanta maturidade se poderá voltar à democracia, quando a oligarquia tiver cumprido sua função de formar a consciência de um povo! A que distância se encontrará esse povo daquele que começava sua vida política com a Revolução Francesa! 

Como o contragolpe será mais civilizado e fecundo, num povo que, por merecimento de um poder centralizado, foi educado para saber eleger e governar, para saber evoluir nas concepções sociais! Essa é a evolução política da unidade coletiva, paralela à evolução em todos os campos.
 
Detenhamo-nos na concepção do Estado futuro, depois de tê-lo orientado assim no tempo e em seu transformismo ascensional. Concepção nova e ousada, base, no campo social, da nova civilização do terceiro milênio.
 
Estado democrático e aristocrático ao mesmo tempo, ele representará a fusão dos dois princípios de concentração e descentralização, ambos necessários. Em sua função unitária, criará uma coletividade mais compacta, em cujo seio o indivíduo não será mais um membro desordenado de um rebanho desordenado, mas será soldado de um exército em marcha, em que vibrará a alma do chefe. Pela primeira vez na história, o Estado fará do povo um organismo, em cujo centro, fundido com ele, far-se-á síntese de vontades e de poderes. 

No Estado futuro o povo não será mais um rebanho governado, que só deve dar e obedecer, mas será o corpo do cérebro central (o governo); o organismo da alma que dirigirá, que por toda parte o penetrará e vivificará com seus tentáculos e ramificações nervosas. 

Não mais um chefe, nem uma classe, nem uma maioria que mandará por si só, mas uma doação de deveres na cooperação, uma fusão completa num trabalho e num objetivo comuns. 




Sem dúvida que historicamente fixou-se na alma das massas, por hábito milenar, uma indiferença pelo poder central, mutável e ausente, mas invariavelmente senhor, diante do qual o povo tinha de ficar sempre igualmente inclinado na posição de servo. 



Formou-se, assim, um instinto de aquiescência passiva, de tolerância e desinteresse, como por uma coisa que não lhe diz respeito, que só age para pesar sobre o povo, educado apenas para a virtude de sofrer e calar. 

O Estado moderno tem de começar pelo trabalho de demolição desta psicologia de absenteísmo político, que se fixou na alma coletiva. 

Pensai que cada concepção e realização política não constitui jamais a última meta definitivamente alcançada, mas que, por ser a síntese de todo o passado, é também o germe de um futuro ilimitado.