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25/09/2015


88. 

FORÇA E JUSTIÇA 

A GÊNESE DO DIREITO





Acenamos a uma evolução das leis da vida, em que o princípio da força transforma-se, na coletividade, no do direito e da justiça. 

Como a evolução, ao modificar o indivíduo, transforma a dor e o amor, dilata a liberdade e a felicidade, ao transformar o indivíduo, transforma a sua lei, também no campo social, evolução significa ascensão da coletividade e da lei que a governa. 









A passagem da animalidade à super-humanidade significa também profundo amadurecimento do fenômeno social em todas as suas manifestações. 

As normas para aprimoramento que a humanidade se impõe pela educação e que denomina virtude, quando fazem o indivíduo evoluir, tornam-no, também, cada vez mais apto à convivência em unidades sempre mais amplas e orgânicas. 

Como individualmente a meta da evolução é o super-homem, coletivamente sua meta é a construção do organismo social até o limite da super-humanidade. Só numa coletividade pode o super-homem alcançar sua completa realização.
 
Paralela à marcha do indivíduo, dá-se, portanto, a ascensão dessa individualidade mais ampla que, combinando seus elementos, elaborando suas células, conquista ela também, tal como o indivíduo, com seu esforço, a sua consciência.
 

Ares e o arquétipo da força física.


Isto é, constrói seu psiquismo, ou seja, a alma coletiva. Esgotados os problemas do indivíduo, observemos agora os mais complexos da evolução social.
 
Na evolução que o homem realiza, de si próprio, realiza-se também a evolução da coletividade, da qual ele é a primeira e mais sólida base. A unidade social tem uma sensibilidade própria, em que se observa e sente a si mesma em cada ponto e em cada elemento que a constituem. 

O princípio do egoísmo e da força, que é dominante no tipo primitivo, é o que há de mais degradante e anti-construtivo nas estruturas sociais. Mas a evolução, que impele a coletividade tanto quanto o indivíduo, possui em si impulsos de auto-eliminação do egoísmo e da força. 

Assim, como se ascende para cada tipo, individualmente, também se transformam os mundos e suas leis. No mundo do subumano a fera e o homem inferior trazem escrito em seus instintos ferozes os artigos desta lei. 

Onde cada ser só sabe existir como uma arma, como um assalto contínuo, uma ameaça incessante para todos os semelhantes, as células da futura unidade ainda não se conhecem, não encontraram os entrosamentos de trocas e fusões; as circunferências das liberdades tendem a expandir-se em torno do centro do egoísmo até o infinito, ignorando limites de contato com outras circunferências semelhantes.
 
A força é tensão necessária de vida que domina soberana, fardo insuprimível. No entanto, em sua baixeza, é esforço de ascensão. Cada vida é imposição forçada a todas as outras; cada direito uma extorsão. 



O mundo social é um choque caótico de forças, ainda em busca de equilíbrios superiores do direito. Esta é a fase involuída das sociedades biológicas, em que os indivíduos ainda não estão organizados em simbiose. 

Estado de agressividade e violência, de incerteza e de luta, em que se prepara a ascensão sucessiva; em que a natureza, expandindo seus impulsos interiores, prepara o amadurecimento da unidade coletiva, de que a sociedade humana é apenas um caso. A lei universal de justiça nesses mundos inferiores, justamente pelo baixo nível dos seres, só pode alcançar o equilíbrio por meio da força bruta.
 
Aí, o melhor é o mais forte, não o mais justo, A densidade dessa baixa atmosfera não permite à lei maiores transparências que essas; o princípio da justiça não pode realizar expressão mais elevada que essa forma de seleção natural.

Justiça existe sempre, mas é proporcional, em sua manifestação, às capacidades de expressá-la no meio ambiente. O ser então denomina justiça ao equilíbrio transitório e relativo do seu nível, e injustiça cada fase que tenha sido ultrapassada.
 
As forças postas em movimento partem do centro do indivíduo; a vida é uma expansão de egoísmo e só ao dilatá-lo, coordena-o com os egoísmos limítrofes para que possam fundir-se. Há um ciclo de ignorância, egoísmo, força, luta, dor, mal, do qual o indivíduo tenta sair. 



Em suas aspirações de ascensão individual, que vimos, cada um descobre objetivos cada vez mais altos, tenta alcançá-los melhor na coletividade e esse ciclo tende a quebrar-se. 

Gradualmente, pela lei do menor esforço e do maior rendimento, esse princípio rudimentar de justiça, representado pela lei do mais forte transforma-se, atingindo-se com isso o mundo humano, em que desponta a consciência de uma lei moral. 

Um princípio utilitário de vantagem coletiva conduz a um abrandamento nas formas de luta, levando à supressão das guerras. Nesse nível, a força, que antes era de justiça, agora se torna violação e injustiça.
 
No primeiro albor da ética, matar e roubar eram lícitos; num mundo ainda não moral como o da fera, os conceitos de bem e de mal ainda dormiam latentes no estado de germe. 

Mas nos choques da convivência social, a reciprocidade das relações, avizinhando os semelhantes, obrigou o indivíduo a sentir a reversibilidade do prejuízo, levou-o à compreensão utilitária e à assimilação do conceito do “ama teu próximo como a ti mesmo”. A ideia do mal já não se ligava mais tanto à vantagem obtida, como com a da reação ao mal que se sofria.
 



É um processo de progressiva harmonização, em que se disciplina cada vez mais perfeitamente o funcionamento dos impulsos da vida. Desta vez é a coletividade que ascende aos equilíbrios superiores da ordem divina. Mesmo coletivamente vedes uma sucessão, por graus, de formas de vida e de leis em que se realiza, sempre e mais evidente, o pensamento de Deus. 

Não fazemos mais que aplicar, sempre e em toda parte, o mesmo princípio universal da evolução que, sozinho, repetido em todos os casos particulares, contém todas as conclusões:  

o universo é organismo monístico que funciona num princípio único. 

Trata-se de uma ascensão totalitária de todas as qualidades humanas, consideradas separadamente e que avançam conexas e paralelas, no indivíduo e na sociedade. Como sempre, em qualquer campo, minhas concepções não são estáticas; cada conceito não se define em sua imobilidade, mas como uma trajetória, um devenir, uma evolução. 

Não trabalho com vossos conceitos comuns rígidos, mas com conceitos fluidos de uma filosofia progressiva, inclusive no campo do direito. 




Não observo os fenômenos do lado de fora, mas coloco-me, por sintonia, no seu devenir. Só se pode alcançar o absoluto com novo método de pensar.
 
A lei ascende e amanhã vossa atual justiça formal, exterior e co-ativa, será violação e injustiça; vossa moral hodierna será imoral, porque tereis descoberto e sabereis viver dos equilíbrios mais profundos. Se a lei é harmonização, a humanidade, por meio de suas guerras, tende à unificação. 

A guerra, no entanto, é o estado de equilíbrio atual, não do seu futuro; é um mal hoje necessário, em vista de vosso grau involutivo, mas dele vos libertareis. O único fato que pode torná-la justa é que ela representa o esforço de alcançar o nível perfeito, em que será possível sua supressão.
 
Entretanto, esse mal de transição já se inverte num florescimento de bem, porque ensinou o homem feroz a matar também por uma ideia, a dilatar o próprio egoísmo até a coletividade. 

O desabafo guerreiro assume, assim, a função biológica de fazer evoluir os instintos humanos de sua primitiva forma egoísta e feroz, até o heroísmo de quem se sacrifica pela Pátria.
 
Por meio da evolução passa-se da força ao direito, do egoísmo ao altruísmo, da guerra à paz. A reação dos egoísmos limítrofes já é uma tentativa de equilíbrio, já contém o germe de uma justiça. 

No princípio, é somente a defesa e a ofensa que garantem ao indivíduo o que lhe cabe. É necessário disciplinar esses impulsos; trata-se de encontrar um princípio de coordenação que os supere todos, uma expressão de psiquismo coletivo que realize mais profundamente a ordem divina. 

Eis como, porque e de onde nasce o direito:  

do grande impulso da evolução, como momento da harmonização progressiva do psiquismo individual no seio da unidade psíquica coletiva. 

Gênese científica do direito, esta, reduzida a um cálculo de forças dos dinamismos individuais, que se harmonizam nos contatos; direito, primeira centelha de coordenação de forças sociais, partindo do centro para a periferia, do indivíduo para a coletividade, em suas expressões cada vez mais amplas de direito privado, público, internacional.
 
Luta trabalhosa, esta, pela qual a sociedade humana realizou a transformação da força em direito. Em meu sistema, estas são apenas duas fases sucessivas de evolução:  

dois mundos limítrofes, duas leis, dois reinos, o da fera e o do homem. 

A força teve, não se pode negar, sua função construtiva na economia da vida. Técnica evolutiva, também aquela, em que a justiça divina manifestava-se igualmente, embora de forma menos evidente. Os povos jovens são espontaneamente violentos, sem escrúpulos, porque também são conquistadores. 

Em algumas condições de ambiente, a prepotência é justiça; é seleção de raça, submetida à prova cruenta, inexorável, é explosão de energias produtivas; é o primeiro esboço grosseiro, mas decidido, em grandes linhas, da alma coletiva. O retoque só poderá chegar depois, com a proporcional sensibilização dessa alma coletiva. 

Então os povos civilizam-se e, depois de ter conquistado seu lugar pelos mais ferozes meios, criam o direito, percebem uma ideia mais exata de justiça; criam virtudes mais evoluídas, correspondentes às mais evoluídas necessidades; substituem pelas virtudes civis da colaboração as virtudes guerreiras da opressão. Eterna história que se repete na vida de todas as unidades coletivas.
 
Então o homem percebe que, se a força criou muito, também causou destruição; percebe coisas que antes escapavam à sua percepção mais rude, que um mundo apenas de força acaba destruindo-se a si mesmo. 

... percebe coisas que antes escapavam à sua percepção mais rude ...


Paralelamente, o indivíduo que, se gozou das vantagens, muitas vezes também sofreu os prejuízos, recorda isso em seu instinto, reagindo para eliminar as causas. 

Surge, então, a ideia de uma utilidade coletiva para suprimir o abuso individual; inicia-se a eliminação progressiva da desordem, mediante um processo de isolamento e limitação do impulso egoísta individual, circunscrevendo-o e marginalizando-o sem destruí-lo, mas canalizando-o para metas coletivas. 

A evolução da força para o direito e a justiça é também evolução de egoísmo em altruísmo. Presenciais, assim, o espetáculo desses impulsos primordiais que, por meio da própria manifestação tendem a eliminar-se a si mesmos. 



Princípio universal de auto-eliminação das formas inferiores do mal, quase uma auto-deterioração da dor por meio da dor, da força pela força, do egoísmo através do egoísmo. A lei evolui na consciência de cada um, conforme o próprio grau de ascensão:  

os indivíduos no seio do povo, os povos no seio da humanidade, equilibram-se em seu nível. 

Posições de progresso e regresso relativos — mobilidade contínua de todas as posições da vida, sucessão de leis e de mundos que progridem, um dentro do outro, sem se destruírem — que os seres formam de acordo com o grau de consciência alcançado, verdade relativa e progressiva, absoluta apenas no âmbito do momento que exprime e sustenta.
 
Por isso, assistis hoje a uma concomitante duplicidade de leis, mesmo no campo social, forma que só é possível num regime de evolução e esta é a sua prova. 

Só uma passagem de fase, o crepúsculo de um período que desaparece na aurora de outro, pode produzir esses contrastes próprios da transição, conhecidos do homem e insuspeitados pelos animais, tranquilos na plenitude de sua fase. 

O homem oscila hoje na passagem entre duas leis. Essa mudança exprime sua maturação biológica no campo social. 



Trata-se de uma demolição progressiva do passado e da reconstrução, em seu lugar, com os mesmos materiais, de formas mais elevadas. Elaboração da substância é evolução:  

o mal é o passado (involução), o bem é o futuro (evolução); bem e mal relativos, em conflito, que repetem, no campo social, a luta que vimos no campo individual entre corpo e espírito. 

Culpa é qualquer retrocesso voluntário, que a lei corrige, reconstruindo o equilíbrio por meio da reação da dor; virtude é tudo o que acelera o avanço e, portanto, premiada.
 
É um mundo imenso, de conceitos e de leis que evoluem, como tudo não pode parar no universo. A necessidade da convivência impõe um mínimo de ética no direito, sempre mais alto. 

Algumas virtudes são obrigatórias por necessidade social. A educação civil impõe sua assimilação e, com o tempo, ultrapassareis as atuais para descobrir outras ainda mais perfeitas. Hoje o conflito é evidente em qualquer forma social. 

Como na luta entre corpo e espírito, o passado sobrevive em qualquer instituição e costume, formando-lhes o substrato fundamental que resiste por inércia, freia o progresso e torna a aflorar a força no direito. 

Em períodos de decadência espiritual, aparece uma degradação dos institutos jurídicos que os reconduz às origens; rebaixa-se o mínimo ético, reforça-se o elemento violência. Hoje, em direito, os dois elementos procuram equilibrar-se: 

justiça e sanção. 

A balança não sabe ser equânime sem a espada. Força e justiça dosarão, diferentemente, suas proporções e o direito conterá mais ou menos uma ou outra, de acordo com o seu grau de evolução. 

Na relação entre a importância dos dois impulsos, qualquer valorização de uma para dominar a outra, será índice exato do grau da evolução de um povo. Como a propriedade conserva traços do furto originário, assim cada forma é filha de outras mais baixas, da qual vos afasta a evolução a cada dia, realizando um trabalho de contínua purificação.
 
Em cada ato, em cada manifestação humana, está de um lado o ideal visto pela mente, mas do outro, a utilidade imposta pela necessidade. Toda vida social agita-se no conflito entre uma equidade, consagrada oficialmente por todas as leis religiosas e civis, e a força, premiada pelo bom êxito em suas ações, muito estimada privadamente. 



O misoneísmo, síntese dos equilíbrios atávicos mais estáveis, desconfia dessas super-construções ideais, não consolidadas ainda pela assimilação realizada. Dela desconfia o instinto da mulher, que escolhe o homem guerreiro e prepotente; desconfia a política internacional, que só acredita na verdade dos exércitos. 

Assim se move vossa fase, no esforço de suas conquistas, entre dois caminhos opostos:  

um teórico e outro prático. 

Um modo de dizer e um modo de fazer; uma mentira muito cômoda e uma realidade muito árdua para praticar; um tormento criativo do espírito, de uma parte, e uma degradação de princípios e exploração de ideais, de outra. 

Nos indivíduos encontram-se todos os diferentes graus, suas apreciações e as verdades mais diversas, pontos de vista com que cada um pretende tudo compreender e julgar o mundo, fazendo-se seu centro. Nesse ambiente, em que parte ainda se retarda no passado e outro se alonga para o futuro, vibram todas as oscilações das afirmativas humanas. 

Oscilações que são evolução, normas e imperativos compreendidos como absolutos, mas que são apenas aproximações progressivas. A codificação, por isso, é sempre substancialmente uma tendência; as formas mudam e a letra está pronta para morrer. O direito é uma formação constante. 

O regulamento jurídico das futuras sociedades humanas será baseado nos princípios científicos, deduzidos das grandes leis cósmicas; harmonizar-se-á como ordem menor, em admirável compenetração de liberdade e necessidade, de dinamismo individualista e coordenação nos fins coletivos, dentro dessa ordem suprema. 

A suprema sanção não pertencerá à pobre razão humana, da qual é possível escapar, mas a uma lei sempre presente e ativa que, no tempo e no espaço, jamais permite escapatória.